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O Senhor dos sonhos

Colaborador de Navego comenta a gênese de história em quadrinhos recriada em filme pela Netflix, atualmente em cartaz com grande audiência.

*Francisco Alexsandro Soares Alves

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A Netflix está produzindo uma série baseada na história em quadrinhos “Sandman”.

“Sandman” é um personagem criado por Neil Gaiman em 1989. Sua revista mensal durou 75 edições e algumas edições especiais, publicadas pela editora estadunidense DC Comics. Aqui no Brasil, foi publicada primeiramente pela Editora Globo, hoje, a Editora Panini republica todo esse material em edições especiais encadernadas, são 13 volumes. A história gira em torno de Sandman, o mestre dos sonhos, conhecido como Morfeus, João Pestana ou Khai’ckul. Ele faz parte de uma família de sete entidades chamada Os Perpétuos: Destino, Morte, Destruição, Desejo, Desespero, Delírio e o próprio Sonho (Sandman).

Seu criador, Neil Gaiman, faz parte da “Invasão Britânica”, conforme se denomina a chegada de autores britânicos de quadrinhos aos EUA, onde produziriam obras para a DC Comics, em meados dos anos 80: Alan Moore, Grant Morrison, Peter Milligan, Jamie Delano, Dave McKean e outros. Editorados por Karen Berger, estes autores sacodem o mundo dos super-heróis ao estabelecer paradigmas que até hoje estão em voga.

Gaiman desejava trabalhar com o Vingador Fantasma (Phantom Stranger), mas o personagem estava nas mãos de outro escritor. Karen sugere que Gaiman crie um personagem novo. E aí nasce Sandman. Esse personagem é o terceiro da DC Comics que tem esse nome: o primeiro foi criado em 1938, por Gardner Fox e Bert Christman; o segundo, Garrett Sanford, por Joe Simon e Jack Kirby, em 1974. O mais curioso é que Gaiman, com o seu Sandman, une todos os outros anteriores de forma engenhosa e, dentro da lógica dos quadrinhos, com total sentido!

Ao longo da saga, várias épocas e personagens históricos são visitados: Roma Antiga, Inglaterra Elisabetana, África Pré-histórica, César Augusto, William Shakespeare, Robespierre e outros, encenam uma saga ao lado de personagens fictícias de forte apelo verossimilhante: Ken e Barbie, Rose Walker, John Dee – e míticos, como Caim e Abel e Hécate. Gaiman demonstra grande erudição ao preencher cada página de referências que englobam a literatura e o teatro, a música e a política e os próprios quadrinhos.

Eu conheci essa obra aos 14 anos e me tornei seu entusiasta. É sem sombra de dúvida um momento alto dos quadrinhos. Essa linguagem que ainda sofre preconceito para ser reconhecida como arte, assim como o cinema também sofreu.

A série tem por enquanto apenas uma temporada de 10 episódios, equivalendo às edições 1 – 16 da revista mensal: as duas primeiras sagas, portanto: “Prelúdios e Noturnos” e “A Casa de Bonecas”. A fotografia, que emula as cenas dos quadrinhos, é um espetáculo à parte.

Altamente recomendável. Porém não fique apenas na série de TV. Aqui vale aquela observação, já batida, mas que é batida por sempre ser verdadeira: o original é melhor, ou seja, nesse caso, os quadrinhos. Não é purismo. Muitas cenas não estão filmadas com o devido impacto que têm nos quadrinhos, isso porque a adaptação em alguns momentos perde o tom.

No entanto, eu estou maravilhado com a produção. Mesmo que, por conhecer a obra original, eu perceba alguns desfalques, algumas ausências e alguns acréscimos, a série é excelente. Já estou ansioso para a segunda temporada, quando será adaptada aquela que é, dentre todas as 10 sagas originais, a mais quadrinhística, exatamente a terceira saga: “Estação das Brumas”. A minha preferida. O prelúdio para essa saga já foi dado nessa primeira temporada, no episódio 4: é sobre a Princesa Nada, uma africana condenada por Sandman ao Inferno.

E não implique com as mudanças sucessivas na etnia e no gênero de alguns personagens. Aqui, sobretudo com os Perpétuos, isso faz todo o sentido. A Morte, que nas hqs é uma mulher branca, aqui é uma mulher negra. A sua chegada, na icônica história “O Som de Suas Asas” (Sandman n.8, nos quadrinhos, na série, episódio 6), é deslumbrante. Os quadrinhos estão ali. Cada movimento da atriz, o olhar, o carisma, a personalidade, Kirby Howell-Baptiste é a personagem de Gaiman.

Uma boa trilha sonora para ler Sandman são as composições do projeto alemão Enigma, de Michel e Sandra Cretu. Michel já havia lançado sua esposa Sandra no mercado, com o hit “Maria Magdalena”, porém era um aventureiro. Sua iniciativa de dar uma guinada repentina na carreira do casal foi acertadíssima. Em Enigma, canto gregoriano se funde à música hindu, batidas dançantes se mesclam aos gemidos sensuais e lamentos entoados por Sandra, que lembram uma orgia entre religiosos em uma igreja. Essa música contém uma atmosfera onírica apropriada. Embora que a letra não contenha muito misticismo, sobretudo no primeiro álbum, que é bastante erótico. Basta não se ligar muito a essa parte das composições. Ouvir apenas a música e sonhar. Quando adolescente, eu gostava de ouvir “Sadness” antes de iniciar a leitura de Sandman. Naquela cena em que Sonho finalmente é libertado e forma-se uma espiral luminosa no calabouço, e ele nu, eleva-se, sempre ouvi os acordes iniciais de “Sadness”