*Gazeta do Povo
Quando opiniões políticas emitidas em caráter privado se tornam motivo para mandados de busca e apreensão, e aqueles que as emitiram precisam comparecer diante da Polícia Federal, podemos muito bem dizer que já não estamos apenas diante de um “editor da sociedade”, nem de um “poder moderador” – expressões efetivamente usadas por membros do Supremo Tribunal Federal para descrever a própria corte –, mas do próprio Grande Irmão orwelliano, que pune até mesmo pensamentos considerados inconvenientes, no que o autor de 1984 chamou de “crimideia”. A operação policial contra oito empresários deflagrada na manhã desta terça-feira é um abuso sem precedentes na história recente brasileira – e, se usamos o termo “sem precedentes” no país dos inquéritos teratológicos que já renderam censura à imprensa e violação da imunidade parlamentar, é porque novos limites foram ultrapassados.
Em 17 de agosto, o site Metrópoles publicou reportagem afirmando ter acompanhado por vários meses as conversas de um grupo de WhatsApp que reúne empresários, alguns dos quais passaram a falar da possibilidade de um golpe de Estado em caso de vitória de Lula na eleição de outubro. “Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo”, teria dito José Koury, proprietário do shopping Barra World. “O golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo. [em] 2019 teríamos ganhado outros 10 anos a mais”, acrescentou André Tissot, do Grupo Sierra. Afrânio Barreira, dono da rede de restaurantes Coco Bambu, apenas enviou uma imagem de uma pessoa aplaudindo, em resposta à mensagem de Koury, mas não escreveu nada sobre golpe. No dia seguinte à publicação, uma série de entidades – algumas das quais usam o epíteto “pela democracia” para camuflar a defesa pura e simples de pautas alinhadas à esquerda – apresentou notícia-crime ao STF, pedindo também a quebra de sigilo telefônico e telemático dos empresários.
Se usamos o termo “abuso sem precedentes” no país dos inquéritos teratológicos que já renderam censura à imprensa e violação da imunidade parlamentar, é porque novos limites foram ultrapassados
Koury, Tissot e Barreira, no entanto, não foram os únicos a receber a visita da Polícia Federal: os mandados expedidos por Alexandre de Moraes também tiveram como alvos Ivan Wrobel, da construtora W3; José Isaac Peres, da Multiplan; Luciano Hang, da rede Havan; Marco Aurélio Raymundo (chamado “Morongo”), das lojas Mormaii; e Meyer Joseph Nigri, da Tecnisa, que são citados na reportagem, embora não falem em golpe – no máximo, eles fazem críticas à atuação do STF e conversam sobre urnas eletrônicas, o que apenas acrescenta uma nova camada de abuso ao ocorrido. Além disso, a Procuradoria-Geral da República afirmou não ter sido intimada a respeito das medidas tomadas por Moraes, o que, embora também seja ilegal, já não surpreende, pois a PGR tem sido habitualmente escanteada em tudo o que se refere aos inquéritos das fake news, dos “atos antidemocráticos” e das “milícias virtuais”; outra violação frequente nestes inquéritos, e que se repete agora, é a inclusão de pessoas que não têm prerrogativa de foro e, por isso, jamais deveriam estar sendo investigadas por ordem do STF.
Como o teor dos mandados permanece sigiloso – outra praxe de tais inquéritos, a ponto de nem mesmo os advogados de defesa de investigados terem acesso aos autos –, só se pode especular a respeito de quais seriam os crimes sob investigação, caso Moraes tenha se recordado da necessidade básica de apontar que leis estariam sendo violadas a ponto de justificar medidas cautelares. E isso nos conduz à questão central que envolve o enorme abuso da ação desta terça-feira. Podemos considerar as ideias de Koury e Tissot profundamente equivocadas – e a Gazeta do Povo, consciente da superioridade da democracia sobre qualquer outra forma de governo, condena veementemente qualquer defesa de um golpe –, mas seriam elas um crime? Pois dizemos, sem medo de errar, que considerá-las como tal é, mais uma vez, demonstrar desconhecimento completo da disciplina jurídica da liberdade de expressão no direito brasileiro, o que inclui o alcance dessa liberdade no país, a necessidade de protegê-la e quais os limites que a ordem jurídica lhe impõe; e este desconhecimento, infelizmente, é doença que se alastra velozmente, sem poupar nem mesmo formadores de opinião que deveriam estar na linha de frente da defesa da liberdade de expressão.