*Joelma Ferreira Franzini
Na mitologia grega, Apolo e Dionísio são filhos de Zeus e, apesar de não se caracterizarem enquanto rivais, o primeiro representa a razão, enquanto o segundo representa o “delírio”, o lado dos instintos mais vitais do ser humano (Nietzsche,1992).
O deus Apolo encarna a racionalidade, o equilíbrio, o comedimento. Simboliza a razão que comanda os impulsos, sobremodo os sexuais. Personifica-se no sujeito cumpridor rigoroso de todos os deveres por conta da coerção e pressão social. Vejamos as proposições de Cunha:
A concepção apolínea se baseia no princípio da justa medida sobre todas as coisas, quem não se enquadrar na forma, é excluído. Essa concepção é que dá suporte para o aparecimento das éticas exclusivas que acreditam em uma ordem primeira, na força da natureza como sendo manifestação do divino, em Deus, em um plano metafísico, no Reino de Deus, no paraíso, na salvação da alma, no inferno, na esperança, etc. (CUNHA, 2006, p.48).
Já o deus Dionísio, representa a energia canalizada para a alegria de viver, toda a beleza do mundo no ato puro e simples de se estar vivo. É o ímpeto ligado aos instintos. “A concepção dionisíaca está fundada simbolicamente no mito de Dionísio, deus do vinho e da embriaguez intelectual. Foi dessa concepção que surgiu a ética do acolhimento. E essa ética, visa a afirmação incondicional da vida […]” (CUNHA, 2006, p.48-49).
A tragédia surge na Grécia antiga oriunda das celebrações feitas ao deus Dionísio. Era uma espécie de dramatização/teatro proveniente dos ditirambos (tipo de cantos), em homenagem a esse deus (HEINZ-MOHR 1994). No início, o culto a Dionísio encontrou resistência dos reis e autoridades religiosas, contudo, foi gradativamente adotado pelo povo grego, recebendo com o passar do tempo, as mesmas honrarias do deus Apolo (CIVITA, 1973).
Nesse período, a Grécia era governada por Péricles, século V a.C. num grande momento de efervescência e prosperidade (MOSSÉ 1985). A tragédia grega estava muito além de uma simples encenação teatral, o espetáculo trágico se organiza sobrepondo três elementos, em que: a) o herói trágico, b) os espectadores e, c) o coro, formavam um todo com forte iteração. O que ligava esse todo, era um elemento único, capaz se suscitar nas pessoas ao mesmo tempo, o racional e o sentimental: a música (Civita 1973).
Nesse grande e triunfal espetáculo da tragédia, geralmente as personagens principais eram deuses e reis, e o grego, compreendia o trágico, enquanto força primordial e necessária à renovação da vida e de sua própria cultura, purificando-se dos medos e traumas, aceitando e afirmando incondicionalmente tudo que a vida pudesse lhe trazer. Mesmo em uma época de alegria, o grego compreendia que não poderia escapar dos infortúnios, e o espetáculo da tragédia era uma forma de ir amortecendo o “acaso”. Entretanto, sabia perfeitamente diferenciar o espetáculo da realidade.
Contudo, toda a cultura ocidental futura, viria a ser influenciada, quase que exclusivamente pelo mito apolíneo. Sócrates teria sido o maior responsável pelo distanciamento do povo grego da tragédia. Sócrates, homem teórico, não aprovava a arte, e dedicara grande parte de sua vida à procura da “verdade”. A filosofia socrática bane o modelo de pensamento dionisíaco e a humanidade agora passaria a caminhar amparando-se apenas pelo modelo de pensamento apolíneo (NIETZSCHE, 1992).
Ser apolíneo, entretanto, não é em si um demérito. É necessário e útil se apropriar do conhecimento científico. Ora se necessita do apolíneo para conservar a própria vida, ora vem o dionisíaco para equilibrar as coisas. Sem Apolo ou sem Dionísio o homem caminha com uma perna só. Na modernidade, o homem utiliza apenas a perna de Apolo.
O indivíduo moderno acredita dominar a vida pelo conhecimento, mas o conhecimento não tem como dominar a vida, pois a vida é da ordem dos acasos, não tem controle, está cheia de elementos desordenados. Nietzsche (1992), percebe a arte enquanto a única forma de libertar os seres humanos. Não existe tragédia sem a união entre Apolo e Dionísio, se fazendo-se necessário a valorização do equilíbrio entre o sincrônico e o anacrônico, a conexão entre o exato e o acaso.
Depreendemos, através do pensamento de Nietzsche (1992), que a estética trágica nos impulsiona a ver o mundo em sua crueldade e também seu esplendor. Somos aquilo que conseguimos externar em nosso sentimento. Somos a aceitação incondicional daquilo que somos. Nós nascemos e morremos e o conhecimento deve estar a serviço desse fato. O critério de avaliação da vida é a própria vida. É pela sensibilidade e pela arte, que você celebra a existência.
Mas o que é isto, o trágico? É a força primordial, afirmação incondicional da própria existência enquanto vida você tiver.
REFERÊNCIAS
CIVITA, Victor. Mitologia. 3. vols. São Paulo: Abril Cultural. 1973.
CUNHA, Guilherme da Silva. Dobras filosóficas. Rio Branco, AC: Globo, 2006.
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus. 1994.
MOSSÉ, Claude. Instituições Gregas. Lisboa: Edições 70, 1985.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. – São Paulo: Companhia das Letras, 1992.