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O velho rapsodo

Fundador de Navegos reproduz fragmento de livro ainda inédito no qual reúne conversas suas com a brava gente potiguar

*Franklin Jorge

Chico Traíra, batizado Francisco Traíra de Alcaniz, nasceu em Ipanguaçu em 1992, na época distrito pertencente ao município de Santana do Matos. Poeta popular, célebre violeiro e repentista, viveu grande parte de sua vida pelo mundo, ganhando o seu sustento com os seus improvisos.

Alto, magro, moreno opaco, de gestos parcimoniosos, usa um chapéu desbotado e sandálias japonesas. Em Natal frequenta as manhas do Café São Luiz, no Grande Ponto, onde sempre descobre um ou outro comprador para os seus livros de poesia, dos quais tira o sustento.

Filho de Jose Traíra de Alcaniz, que morreu em 1969, e de Rita Gomes, morta em 1976, marido e mulher maiores de 87 anos penosamente vividos. Descende de uma estirpe de agricultores e poetas. O Alcaniz foi adotado por Papai, que é dos Santiagos do Assu, e gostava muito de ler. Numa dessas leituras ele descobriu um velho que morava na beira de uma lagoa, a lagoa de Alcaniz, lá para as bandas da Espanha. Ali cuidava dos peixes. Acontece que nessa lagoa havia muitas traíras. Então Papai, já Traíra era o apelido tradicional da nossa família, resolveu ajuntar o Alcaniz ao nosso nome, homenageando assim o velho romance que lia. A partir desse dia ele passou a assinar-se Jose Traíra de Alcaniz.

Quando Chico era rapazinho ouviu muitos violeiros afamados que apareciam para animar as festas ou participar de cantorias previamente contratadas. Papai gostava de ouvi-los e sempre me levava com ele para as cantorias, que naquele tempo eram muito concorridas. Então eu ficava vendo e ouvindo os cantores e aquilo foi se alojando em mim e encontrando respaldo em minha mente. Uma noite, quando a gente voltava para casa, eu disse a papai que cantar não seria para uma coisa difícil. Papai deu uma risada, duvidando de minha afoiteza. Eu tinha dezesseis anos. Porém persisti naquela ideia e não deixei de pensar que se me atravesse a cantar, cantaria. Havia um patente nosso que era cantador profissional. Passei a conviver mais com ele, com quem conversava sobre a arte da poesia e, às vezes, por brincadeira, improvisava alguma coisa, só para sondar a sua opinião. Ele dizia, Rapaz, você esta danado… Ate que um dia eu fui a uma cantoria dele com um outro rapaz que cantava muito fraquinho e não agradou. A plateia de cantoria era muito exigente e botava os cantadores sem talento pra correr. Então o meu parente, apaziguando os ânimos e, para salvar a noitada dum fiasco total, me convidou. Vem, Chico, cantar um pouquinho para animar essa gente. E eu, que era tímido, respondi vou nada, tentando escapar daquela prova. Ele ficou naquela insistência e dali pra frente os presentes começaram a exigir que eu cantasse. Acabei indo cantar e passei no teste. Isso aconteceu mesmo em Ipanguaçu, nem me lembro mais a data, tanto tempo passou desde então.

Violão eu já tocava e em 1946 Alípio Tavares tinha contratado uma cantoria no município de Afonso Bezerra e não pode ir porque viajou de ultima hora para Mossoró. O rapaz que cantaria com ele ficou aperreado, querendo ganhar aquele dinheiro. A cantoria, me lembro bem, foi contratada por cem mil reis, um dinheirão. Fui, mais para quebrar o galho dele, sem muito entusiasmo, apenas para ajudar o rapaz que só pensava nos cem mil reis que perderia, se não cantasse. Ajeitei minhas coisas. Mudei as cordas do violãozinho que adaptei para viola, e fui. Cantamos e ganhamos os cem mil reis. Aí, não parei mais. O resultado e que, depois dessa excursão, cheguei em casa com quatrocentos mil reis no bolso. Era então muito dinheiro. Me lembro que comprei roupa que foi o diabo para a festa de São João que se aproximava. Vesti a família toda e ainda sobrou dinheiro. Aí eu resolvi que não deixaria mais essa vida de cantador não.

Em 1953 estava em Natal, participando de programas de auditório. Havia um programa na Rádio Poti, Meu Pé de Serra, de Edmilson Andrade, que me botou para cantar com Patativa, de Campina Grande, que tinha deixado o seu programa na Radio Borborema. Foi um sucesso.

Natal era uma cidade muito pequena e acanhada. Não tinha jeito de capital. Era uma Mossoró melhorada, nada mais que isso. Não tinha nenhum conjunto habitacional, o que só viria a ter no governo de Aluizio Alves, entre 1961 e 1965, com a construção da Cidade da Esperança. Na Cidade Alta, bairro misto de comercio e residências, havia o Café Maia e o São Luiz, que depois se mudaria para esta Avenida Princesa Isabel e aqui ficou ate o dia de hoje. Como não havia outra diversão, o povo passava o dia batendo papo nesses dois cafés.

Antes veio a guerra, quando muito moço ainda trabalhei em Parnamirim. O povo todo inocente não sabia o que se passava ao certo. Não sabia de nada. Eu ia para Parnamirim de-madrugadinha e só voltava à noite, morrendo de cansaço. Notícias de guerra ninguém tinha. Todos os dias chegavam e saiam de Parnamirim dezenas de aviões apinhados de americanos e a gente, que não sabia ao certo o que se passava, levava tudo na brincadeira. Foi quando o povo de Natal mais se divertiu. Era festa em cima de festa. Bebidas, cigarros, coca-cola… A fodelança em Natal, nessa época, era demais.

Os americanos praticamente não tinham relacionamento com os natalenses, a não ser com as mulheres. Eles estavam ali trabalhando. A noite os civis e os soldados vinham para a Cidade, ou melhor, para a Ribeira, que era o bairro boêmio. Quem morava na Cidade, tendo dinheiro, frequentavam os cabarés da Ribeira. Quem mandava nos cabarés eram os americanos, porque tinham dólares, que era o único dinheiro que tinha valor. Os brasileiros, que tinham o cruzeiro, não valiam nada para as raparigas. Eu, muito pobre, não podia frequentar esses lugares. Vivia na maior ignorância da realidade. Muitos, da minha laia, chegavam tarde em casa, apenas para dormir. E de-madrugadinha, como já disse, pegávamos os caminhões que transportavam os civis e íamos para Parnamirim, onde fazíamos o serviço pesado. Os americanos mesmo eram uns lordes.

A Ribeira era um curralzinho; só tinha ali o Beco da Quarentena e as pensões de mulheres, Maria Boa, a Pensão Estrela e aqueles cabarezinhos sem futuro onde a gonorreia comia solta. Nunca frequentei o Café Cova da Onça, preferido dos políticos e jornalistas famosos. Eu era muito moço e tinha medo de tudo. A cidade era um mundo estranho para mim, que me criei nos matos ou em lugarejos. Os soldados eram violentos uns com os outros. Havia uma rivalidade danada entre eles e, por qualquer um dá-cá-aquela-palha, estavam se estraçalhando. Houve mortos de paisanos sem conta e isso amedrontava a gente. No Alecrim, perto do cemitério novo, abriram umas grandes valas de abrigo antiaéreos, onde mataram muita gente. Os soldados viviam feito loucos. Iam para a guerra e não sabiam se voltavam com vida ou não. Aí aproveitavam quanto podiam. Era aquele desespero tremendo de quem vivia como se a vida não tivesse valor. E o que me lembro da primeira vez que morei em Natal. Hoje, sem guerra, e muito diferente da cidade que conheci.

No Assu morei em duas épocas diferentes. De 1945 a 1960 e de 1970 a 1982. A cidade mudou muito nesse segundo período. Antes a política ranzinza entravava tudo. Eram dois os chefes políticos e tudo girava em torno deles. Era a vontade de cada um que prevalecia sobre o grupo. Quando um perdia a campanha, o que ganhava e assumia o governo do município desmanchava tudo o que o outro havia feito. Os mandachuvas eram o doutor Ezequiel Fonseca e o doutor Pedro Amorim se revezando no poder. Atualmente, com as mudanças, já se nota que o progresso e maior. Depois do prefeito Arcelino Leitão, um mulato que aportou no Assu como funcionário da firma do senador João Câmara, grande compradora de algodão, a cidade evoluiu e trouxe o progresso. Ele tinha la os seus defeitos, como todo mundo, mas deu um novo direcionamento a tudo. Era ambicioso, conquistador, desfez muitos lares, mas mostrou que era possível mudar a cidade para melhor. Muito vaidoso, galgou muitos degraus rapidamente. Chegou a gerente da firma e entrou para a política. E uma personalidade interessantíssima. Teve muito poder e morreu pobre, liquidado, depois da ultima campanha. Como prefeito era o homem dos empreendimentos arrojados, das festas populares, das novidades, do luxo. Urbanizou o Assu. Construiu praças e se interessou pelas crianças, criando para elas um parque que chamava a atenção de todos o que passavam pela cidade. Porem as elites procuravam desqualificá-lo. Eu me lembro de uns versos sacanas que fizeram contra ele e que mal escondia a grande incapacidade dos políticos assuenses como administradores. Não sei quem compôs esses versos, atribuídos por uns a Renato Caldas, e por outros, a João Fonseca. Nessa época a disputa era ente Costa e Edgar Montenegro, que a bem da verdade, tem sido um político nulo para os interesses do Assu.

Viajando no sertão,

Na granja de um fazendeiro,

Olhando para um chiqueiro,

De costas vi um leitão.

Estranhei a posição

Do animal satisfeito,

Que estava sugando o peito

De uma porca que dormia.

Parecia ate que queria

Candidatar-se a prefeito.

Um dia Ximenes e chamou e disse, Chico, eu queria que você fizesse uns dois ou três versos em cima dos comentários das pessoas que dizem que Costa ganha as eleições. Ele me deu o mote, “nunca vi ninguém de costa saber o que vem por trá”. Compus essa glosa:

Eu nunca vi bom vaqueiro

Montado em cavalo ruim,

Nunca vi gente em festim

Fazer ação sem dinheiro.

Eu nunca vi forasteiro

Cumprir promessas que faz,

Nunca vi se dar cartaz

A coisas que não se gosta.

Nunca vi ninguém de costa

Saber o que vem por trás.

Essa campanha foi muito dura e cheia de golpes baixos. Cheia de ataques pessoais. Sujíssima, enfatiza Chico Traíra. Foi realmente muito áspera. Mas Edgar perdeu a eleição, porque era e ainda e um político mão fechada. Costa acabou com a firma de João Câmara, mas se elegeu. E foi um bom prefeito, talvez o melhor de quantos o Assu já teve. Ele era vaidoso e o homem vaidoso, quando inteligente, gosta de fazer as coisas para aparecer. Então ele fez as coisas no Assu. Ainda hoje esta lá o marco de sua administração. Costa foi um homem que viu o futuro de frente. Fez aquelas praças todas que seus sucessores, depois, deixaram se acabar. Quem não se lembra da beleza que era a Praça Getulio Vargas com os seus viveiros de pássaros, uma variedade enorme de periquitos australianos, tanque de tartarugas, arvores, sebes bem cuidadas, bancos, estatua, luzes coloridas…? Fez ainda a Praça do Sal, o Parque Palmério Filho, um lugar de lazer para as crianças. Costa foi um prefeito que soube valorizar os talentos da terra. Incrementou o teatro, trouxe grandes orquestras para tocar nas festas do Clube Municipal, enfim, modernizou o Assu. Fez com que tivéssemos orgulho da cidade. Só não achavam a sua administração boa aqueles adversários radicais. Eu não votei nele, mas admirava a sua competência extraordinária, o trabalho que realizou pela cidade que o acolheu. Depois de um governo bem sucedido ele candidatou a mulher, Maroquinha, Maria Olímpia Neves de Oliveira, que se elegeu e deu continuidade ao seu trabalho. Nessa campanha da Onça contra o Golinha, ou seja, entre Maroquinha e Walter de Sá Leitão, eu não estava mais no Assu. Durante a disputa eu passei pela cidade uma única vez e me deram um mote para glosar. Me lembro que dizia assim – No Grupo a Onça Pintada, Golinha na Prefeitura. Ela era professora e gostava de usar um tecido rajado que lembrava ao couro de onça. Daí o apelido. Mas, no momento, não lembro mais dos versos que fiz. Minha mente já está ficando cansada.