*Alexsandro Alves
Durante muito tempo, tive medo de Clarice Lispector e também, de ouvir a Sinfonia n. 3, de Mahler. Medo mesmo. Eu era jovem e sempre que ouvia o nome da escritora caía pesaroso e afirmava: “eu nunca irei ler Clarice”. De fato, me assombrava com ela. Assim como a Terceira Sinfonia, de Mahler, que só ouvi completa a poucos anos e na casa de um amigo, em sua companhia, em verdade nunca desejei ficar a sós com essa música. Mas ele não sabia disso, que era a primeira vez que escutava a obra, assim como não sabia do meu sentimento de horror para com ela e também não sentiu meu nervosismo com a mesma.
O que mais me atormentava em Clarice, e ainda me atormenta, porém sem aquele sentimento de medo de antes, é que ela conversa com a realidade tão jocosa e usa metáforas sublimes e desconcertantes para fatos por vezes corriqueiros, então, era uma transfiguração do ordinário, do comum, em elevações de uma inspiração sublime, que sempre me fizeram, desde que li essa escritora pela primeira vez, desmoronar.
Um livro que poderia ser lido em poucos dias, durava meses. Porque eu fechava o livro e chorava. Chorava em qualquer lugar. E durava semanas. Eu me aproximava do livro e me angustiava ao ponto de não querer retornar a ele. Porém, como num ato de sadismo, voltava. E ela me derrubava novamente. Foi com Clarice que, pela primeira vez eu percebi, que a arte me causava fragilidades. E quão frágil eu era diante da arte.
E com o tempo em comecei a temer a escritora. Porque era muito forte seu olhar sobre mim. Lembro de uma vez, entre o desejo de realização e a consciência que deveria evitar certos estados da alma, que resolvi ler Clarice após um sonho ruim. Era madrugada.
Aquele sonho me atormentou durante a semana inteira. Houve um tempo em que fui atormentado por imagens oníricas constantes. Um bojão de gás de cozinha na iminência de explodir. Sofri muito com esse sonho ruim. E nessa madrugada, já sem suportar mais o peso, a semana inteira com o mesmo sonho, resolvi radicalizar meu estado. Suicídio? Corri e abri A Paixão Segundo G.H. em qualquer ponto que não lembro, mas iniciei uma leitura sem trégua, uma guerra contra mim. Ah, como queria lembrar em que página o abri e até onde o li. Se é que o li naquela noite. Se o li, o li até desmoronar novamente no sono. Ao acordar, o livro estava sobre mim. Deve tê-lo lido. Os sonhos passaram. Porém até hoje eu não consigo matar uma barata. Meu relacionamento/tormento com Clarice nunca findará. Ela continua sendo motivo de tormento. Que assim seja.
Com a sinfonia de Mahler o que me ocorre é a falsa inocência dessa obra. Parece um festival de infantilidades grotescas, à medida que a obra avança. O primeiro movimento, de 30 minutos, é a chegada de Dionísio, o deus do vinho e senhor dos excessos. Mas quando ouvimos o terceiro movimento, uma canção popular grotesca orquestrada de forma espalhafatosa, soa ingênuo ao mesmo tempo que soa sinistro. E esse é o tom dessa sinfonia, ingenuidade e horror. O quinto movimento, um coro infantil com contralto, com aparência natalina, não faz muito esforço para esconder uma canção do destino, pesada e sombria, em que os sucessivos “bim, bam” das crianças se tornam, pouco a pouco, um comentário irônico da desgraça humana. Ante palavras cantadas de uma certa esperança, a orquestra tece seu “conforme-se”, “o que é você?”. É um peso muito grande. E então, entra o sexto e último movimento, delicado, como nunca Mahler escreveria novamente. Terno. Profundo. E sempre melancólico, até quando triunfa. É esse, pois, o homem moderno. Vivendo sua sina afastado da terra com uma fera sempre a espreitar-lhe o ânimo.