Antenor Laurentino Ramos
“Natal do Meu Tempo” foi o primeiro livro de memórias que li em minha vida. Eu tinha meus treze anos de idade. À medida que lia esta obra, sentia-me como se viajasse na máquina do tempo, e Natal aparecia-me com os olhos do passado. Fatos, figuras, que não conheci outrora, tornavam-se próximos meus.
Sempre gostei de ler em voz alta. Aprendera com Zélia Ramos Santiago, minha professora de português no Ginásio Natal, de saudosa memória. Ela notava que, quando lia assim, era como se as coisas fossem melhor compreendidas. João Amorim Guimarães, o seu autor, foi um grande memorialista potiguar. Conheci-o através de meu pai, de quem ele era amigo. Simples, de pouca conversa, mas cordial. Era comum vê-lo a passear nas ruas centrais da cidade. Era escritor do Açu, terra das grandes inteligências do Rio Grande do Norte. Acho que os familiares ou herdeiros desse excelente escritor deveriam reeditar tão precioso documento.
A história da capital potiguar, de seu povo, encanta-nos com sua prosa limpa e viva.
Nunca encontrei um livro tão gracioso, com uma linguagem deliciosa onde a oralidade muito contribui para torná-la vivaz. Até hoje, recordo as histórias e os personagens que as protagonizam. Desde as figuras brilhantes da intelectualidade local até as pessoas pobres da província de Poti, tudo ali é gente que nos comove e nos transporta a um tempo e a um meio onde a humanidade se respira a valer.
Simoa, malcriada, com os palavrões infalíveis e descomunais, a vendedora de raízes: “Quem quê comprá, juá , Jucá?” E aí vai… Cavalcanti Grande, um higienista que se tornou famoso no Estado à época da epidemia de bexiga. Morria gente muita. Padre João Maria, um benquisto sacerdote a abençoar seus fiéis. Beiete, meio amalucado, nas conversas, com a Santa Cruz da Bica, tentava nos seus delírios engabelá-la. Inventava que jogava buraco com o monumento religioso e este sempre perdia nos jogos, e Beiete, o campeão, raspava todo o dinheiro que ali depositavam os fiéis e devotos. Se a polícia o prendesse, desculpava-se. Num misto de malícia e inocência, dizia que “era ela quem me chamava para jogar! Não tenho culpa nenhuma”. Natal do meu tempo!
Os encontros poéticos e boêmios do Café Majestic, dos quais faziam parte Jorge Fernandes, poeta satírico, Luís da Câmara Cascudo, Otoniel Menezes, com sua bela canção “Praieira”, Ferreira Itajubá, Damasceno Bezerra, Pedro Lagreca, Deolindo Lima, Abelardo Melo e tantos outros do meio literário natalense.
As festas populares como o Carnaval, onde o povo participava espontaneamente, festa de rua e de família. Os carros e bailes carnavalescos que eu ainda alcancei. Hoje, não mais existem. As comemorações religiosas como a festa de Natal, da padroeira Nossa Senhora da Apresentação, as festejos juninos e festas de Reis, animadas pelos pastoris, fandangos e mamulengos.
Os alfenins, doces secos, geleias e meladinhas também compunham esse ambiente festivo. Com a leitura desse bom livro, repito, tem-se um retrato fiel e completo de como era a bela cidade dos Reis Magos com sua gente e seus costumes. Tempos…
Dar bom dia ou boa noite era um sinal distintivo de boa e sadia relação humana. Saudar alguém era como se fosse um mantra. Hoje, Natal virou uma cidade mal-educada, grosseira. As pessoas não pedem mais licença, não dizem obrigado. O Alecrim que o diga. Ao sair de casa, você pede a Deus para não sofrer qualquer tipo de agressão. As relações entre vizinhos eram agradáveis. Não se veem como se viam antigamente as cadeiras nas calçadas e quase todo mundo se conhecia pelo nome. Não se trata de saudosismo, de coisas das “antigas”, conforme dizem os jovens dos dias atuais.
Vale a pena a leitura desse livro, insisto. Com ela, conhecemos melhor a biografia de Natal, a sua história, a geografia, os hábitos, os costumes dos potiguares. Serve até, literariamente, como um documento de grande qualidade sobre nossa terra, as raízes de seus habitantes e dos que nela nasceram. Que os cultores das boas letras tratem disso. Que nossa capital, que tanto amamos, possa ser mais bem conhecida. Que ela chegue às escolas e que os estudantes de agora fiquem a saber o que é o seu torrão. Um povo que não se conhece não é digno do respeito de seus visitantes. Que assim seja! Leiamos João Amorim Guimarães!
Antenor Laurentino Ramos, professor aposentado das redes pública e privada de Natal, é autor do livro “Memorial da Anta Esfolada” (FeedBack; 172 págs.; 2014).
XARIAS E CANGULEIROS Vista da antiga rua Junqueira Aires, atual av. Câmara Cascudo, que liga os bairros da Ribeira e Cidade Alta, no início do século XX, quando viveu o memorialista João Amorim Guimarães, autor do livro “Natal do Meu Tempo” (Fundação Hélio Galvão; 1999)