*Francis Bacon
Há razões menos apocalípticas para não gostar do romance clássico e concluir que, para escrever bem, é preciso de alguma forma escrever contra ele. Uma seria quão longe o romance parece nos pegar; e também, relacionado a isso, quão arbitrárias suas tramas nos parecem. Holden Caufield, o protagonista de O apanhador no campo de centeio, de Salinger, coloca isso perfeitamente ao se referir a um filme inglês que acabou de ver:
Então ele conhece uma linda garota, inocente e modesta, que está entrando em um ônibus. O vento sopra seu maldito chapéu e ele o pega, e então eles sobem e conversam sobre Charles Dickens. Ele é o autor que ambos mais gostam. Ele tem uma cópia de Oliver Twist no bolso e ela também. Como vomitar.
Em suas conversas com David Sylvester, Francis Bacon insiste repetidamente na diferença entre o que ele chama de “iluminação” e o que ele mesmo tenta fazer. “E o que você quer dizer com ilustração? Uma espécie de cautela, uma falta de relaxamento…?, pergunta o crítico. Ao que Bacon responde: “Por ilustração entendo a mera expressão da imagem que se tem à sua frente, sem inventar nada. Acho que é tudo o que posso dizer.” Embora ele diga outra coisa em outra conversa:
Quando, sem saber como proceder, outro dia estava tentando pintar a cabeça de uma pessoa, recorri a um pincel enorme e a um balde de tinta, e comecei a escovar à direita e à esquerda, de modo que no final nem sabia o que fazer, eu costumava fazer, até que de repente tomou forma e se tornou a imagem exata que eu procurava. Não foi uma decisão ponderada, nem nada que tivesse a ver com pintura ilustrativa. Que eu saiba, ninguém parou para refletir sobre o motivo pelo qual essa forma de pintar é mais cativante do que a ilustração. Suponho que seja porque tem vida própria, uma vida própria que transmite a essência da imagem de uma forma mais cativante. Assim, o pintor é capaz de abrir, ou melhor, afrouxar as válvulas do sentimento e forçar o espectador a olhar a vida de frente.
“Uma vida tão única quanto a imagem que tenta capturar”. Essa é a chave. A mesma coisa que Wordsworth fez em seus poemas mais sublimes, ou o que Rabelais ou Cervantes fizeram, cada um à sua maneira. A figuração é precisa, mas está morta. Bacon não quer produzir uma imagem do que está na sua frente ou na sua cabeça. Em certo sentido, o que ele busca é que o que pinta tenha vida própria, a vida do que tem pela frente ou na cabeça. Por outro lado, garante a Sylvester, prefere pintar figuras solitárias porque, quando há mais de um personagem, a pintura leva ao que ele mesmo descreve como “fofoca”, ao anedótico, que nada mais é do que uma extensão do a ilustração. “Sou da opinião que, no momento em que aparecem várias personagens numa pintura, surgem instantaneamente fofocas sobre as relações que podem existir entre elas, o que desencadeia imediatamente uma espécie de narração. Espero um dia poder pintar uma composição de muitas figuras que não dê origem a essa narração”. “Como no caso dos banhistas de Cézanne?” Sylvester pergunta. Ao que Bacon responde. “Exatamente”.
Gabriel Josipovici
O que aconteceu com a modernidade?
Tradução: Gregorio Cantera
Editora: Turner
Foto: Francis Bacon, de David Bailey, 1983
© David Bailey