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Onde está sepultado Ferreira Itajubá?

Em colaboração com o Instituto Ludovicus, Navegos retorna às publicações das Actas Diurnas, do Mestre Câmara Cascudo. Na presente crônica, um fantasma que canta versos, ossos jogados ao chão em rezas rituais e uma lição que Natal concede aos seus escritores: a indulgência e o esquecimento.

*Luís da Câmara Cascudo

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Manuel Virgílio Ferreira Itajubá morreu na Santa Casa de Misericórdia, no Rio de Janeiro, a 30 de julho de 1912. Se vivesse até 21 de agosto, o claro mês dos meus anos terá trinta e seis anos. Foi sepultado sem notícia e ficou dormindo no chão carioca, nome vago entre vagos nomes que ninguém recordará.

No Rio Grande do Norte sua popularidade era fator pejorativo para os “intelectuais”. Jamais o considerou poeta. Itajubá doido para figurar em todas as associações, era recusada por todas. Faziam pilhérias. Puzeram-lhe o apelido de Poeta Cajueiro. Magro, desengonçado, com andar de marinheiro, voz teatral, calvo na fronte e cabeleira rala no oculte, Itajubá rosnava, – certo do valor pessoal:- Deixe-os conversarem…

Só Henrique Castriciano o compreendeu e distinguiu, escrevendo crônicas muito discutidas, sobre o mérito discutidíssimo do Poeta Cajueiro. Itajubá, com seu frack esverdeado, seu colete entre lilás e vermelho, sua mania pelos pastoris, seus discursos nos circos de cavalinhos, seus poemas nas Rocas, na Rua da Lua, na travessa Paraense, no beco do caju, seu violão de folhas de flandres (para a chuva não descolar), seu vozeirão rouco de pai-nobre encatarroado, estavam distantes do bom tom, das exigências sociais, do protocolo, da arte mundana dos poetas que pertenciam aos sodalícios ilustres. Itajubá era apenas instinto, força de imaginação insubmissa, prodigiosa de colorido, de graça, de originalidade e de beleza. Mas, gramaticalmente, era cataclismo. Levou um soneto á H. Castriciano, onde se lia: “- atua carne alvar”.

– Que diabo é carne alvar, Itajubá?

– É carne branca, alva, respondeu impassível o bardo maravilhoso. Sem gramática, é a mais completa organização poética, natural e viva, que possuímos. Quando todos os vates cantavam a Grécia e palmas de acantos, Frinéas e Laís, montes clássico e gente de longe, o poeta Cajueiro fixou a natureza radiosa que o cercava. Ninguém antes dele elegera uma moça praieira para tema de poema. Ninguém trouxera a paisagem das praias ensombradas de coqueiros, a lua de março refrescando as jangadas no mar azul, os rolos, as flores rústicas os rojões de viola festeira, o crepitar de fogueiras pelo S. João, o berro das roqueiras distantes, as serenatas, os mangues, a rede armada nos alpendres na hora do mormaço, as dunas alvas, coroadas de verde, todo o encanto, disperso e lindo, que os olhos não tinham querido ver.

Esse poeta começou a ser aclamado quando não podia agradecer a homenagem justíssima. Representamos a justiça com a face vendada quando outro atributo seria fazê-la cavalgar uma tartaruga. Quando um poeta encontra o seu momento de glória, já se despediu da vida. É regra com a exceção sabida, aqui e além.

Morto Itajubá, Henrique Castriciano deixou passar três anos e trouxe os ossos, em 1915, para Natal. Vi o caixãozinho escuro sem dísticos, na residência de Henrique, na Avenida Jundiaí, numa casa que não existe mais. Ficou meses e meses em cima de uma prateleira. O criado de H. Castriciano, Ambrósio a quem chamamos Inselência, por dar esse tratamento a todos, começou a ficar assombrado. Diga-se que Ambrósio ignorava o conteúdo do caixãozinho. Pela manhã, Inselência se ia queixar a H. Castriciano que não podia dormir com as cantarolas e versalhadas daquele freguês que estava dentro do caixão. Ambrósio afirmava que ouvia alguém cantarolar e dizer versos, horas seguidas, no quarto de Henrique. Para sossegar Inselência, Castriciano levou os ossos de Itajubá e deixou-os, em depósito, na Igreja do Bom Jesus, a frei André, um franciscano, português, que aqui morou muito inteligente e boa pessoa. Tempos depois, lembrando-se de promover o jazido para Itajubá, foram amigos ao Bom Jesus, entre eles o prof. Luís Soares. O padre explicou que, numa reforma, não sabendo que fazer de tanto osso sem dono e sem sepulcro, mandara abrir uma fossa na Igreja e a todos enterrara, com orações rituais. Não sabia indicar onde. E com os ossos de Itajubá tinham ido dezenas de outros anônimos.

Assim, Ferreira Itajubá está sepultado no sagrado, na Igreja do Bom Jesus. Mas não se sabe o lugar. E não se saberá jamais…

Natal, quando eu morrer, apaga-me da lembrança.

Mas guarda-me na cova em que meu pai descansa… Pobre Itajubá!… Esse desejo, a cidade cumpriu, justamente em contrário…

A República, Natal, 27 de março de 1940.

Fonte: Acervo LUDOVICUS – INSTITUTO CÂMARA CASCUDO