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Ópera gravada: ao vivo ou em estúdio?

Uma discussão que sempre aparece quando se resolve comprar uma gravação de ópera é sobre o tipo de gravação: ao vivo ou em estúdio, quais as vantagens e desvantagens de cada uma?

*Alexsandro Alves

[email protected]

 

É mesmo uma disputa que nunca terá vencedores, mas os concorrentes e apostadores aumentam a cada ano.

O que é melhor: uma ópera gravada ao vivo ou uma ópera gravada em estúdio?

Há vantagens e desvantagens em ambas as opções, e a resposta é muito pessoal, porém é possível elencar algumas características nas duas opções que sempre são notadas pelos adeptos do som ao vivo e pelos adeptos do som de estúdio. Respondo logo que prefiro o som ao vivo. Mas também amo o som de estúdio. É possível que se complementem? Tudo é possível.

Aos amantes da ópera, para quem uma exibição irrepreensível de uma ária é o portal para as mais exuberantes fruições estéticas, usarei como exemplo para este texto gravações do Anel, de Wagner. Por quê?

Porque é a obra que mais possuí e possuo gravações, além disso, mesmo gravações que não tenho em minha discoteca/videoteca, conheço através de amigos. Ou seja, exemplifico com conhecimento de causa, dado ao tempo que dispensei durante décadas de amor à ópera e a sua audição.

Antes de mais nada, ouvir é melhor do que ver. Mesmo na ópera. O olhar distrai. Claro que é imprescindível o teatro, o vídeo. Mas para analisarmos a música precisamos desligar, o máximo possível, os outros sentidos, por isso que fechar os olhos durante uma audição de uma música nos permite uma intimidade maior com ela. Eu não dispenso o vídeo, muitas das minhas gravações atuais de ópera são em DVD ou BD. Mas o áudio por si só tem seu lugar soberano na vida de qualquer melômano.

Então, estabeleço estes dois pontos antes de iniciar as vantagens e desvantagens: primeiro, são gravações do Anel dos nibelungos; segundo, são gravações unicamente de áudio, CD ou LP.

O meu primeiro Anel que ouvi completo foi o de Karl Böhm, em 1997. Gravado ao vivo em Bayreuth, em 1967. Theo Adam, como Wotan; Birgit Nilsson, como Brünnhilde; Wolfgang Windgassen, como Siegfried; o casal de gêmeos Siegmund e Sieglinde são vividos por James King e Leonie Rysanek, eram alguns dos nomes que faziam parte do elenco estelar dessa produção.

Comprei essa gravação em um sebo aqui da cidade. Uma caixa de veludo verde contendo 16 LPs mais um encarte com detalhes sobre a gravação. Na capa, uma pintura da cabeça de Wagner:

Fiquei muito emocionado ao encontrar essa joia no Cata Livros, de Jácio e Vera. Conheci o sebo em 1992, quando funcionava próximo ao IHGRN. Em 1997, fazia apenas cinco anos que ouvira a música wagneriana pela primeira vez. Com o passar do anos, minha predileção por Wagner foi mudando, mas nesse período minhas obras preferidas dele eram os quatro dramas da Tetralogia. Abaixo, a capa do encarte, com uma gravura antiga da alameda Siegfried Wagner em dias de festivais, tendo ao fundo a Casa dos Festivais.

A página 3 do encarte fala “Teatro dos Festivais”, mas Festspielhaus, nome em alemão, é “Casa dos Festivais”, em português.

 

A gravação em estúdio que ouvi primeiramente foi a de Herbert von Karajan, para a Deutsche Grammaphon. Na época, eu ainda não a possuía em minha coleção pessoal, a ouvia na Escola de Música da UFRN:

 

Como disse, é sempre uma questão de gostos pessoais e eu tive muita sorte em começar a ouvir ópera mais seriamente com duas gravações que são o topo da inspiração de seus chefes de orquestra, Böhm e Karajan.

Para começar, uma gravação ao vivo é sem dúvida mais humana; podem ocorrer erros e esses erros são notados de cara. Nesse Anel ao vivo, de Böhm, Birgit Nilsson interpreta a valquíria Brünnhilde. Imaginem isso. A primeira aparição da personagem se dá na primeira cena do segundo ato da Valquíria. É um momento de fôlego para a intérprete que precisa escalar notas cada vez mais agudas, até o Si4, com seu “Hojotoho, heiaha!”, o grito de guerra das valquírias. Nesse instante, na gravação de 67 de Böhm, notamos que Nilsson solta o fôlego no final, e isso é arrebatador, conforme vídeo abaixo. Note: o vídeo inicia com Wotan finalizando as ordens para sua filha: “Drum rüstig und rasch, reite zur Wal!”, “Por isso, forte e veloz, cavalga para a batalha!”, segue imediatamente o “Hojotoho, heiaha“, da valquíria. Exatamente após o último “Hojotoho!“, a garganta de Nilsson solta, inesperadamente, uma leve rajada de oxigênio:

Essa pequena sujeira pode causar desagrado nos mais puristas, mas é isso que torna a gravação ao vivo mais urgente e é exatamente com gravações assim que percebemos o valor alto de um artista. Após essa prova de fogo, na sequência, Brünnhilde é quem continua a cena, e Nilsson retoma sua deixa como se nada de mais  tivesse ocorrido antes. Isso, e outras qualidades, é que fizeram dela a maior Brünnhilde dos últimos 50 anos.

Numa gravação de estúdio esse detalhe seria eliminado e a cena regravada até a perfeição. Uma perfeição artificiosa, mas que não desagrada o ouvido quando ouvida.

Mas as gravações ao vivo possuem uma desvantagem realmente séria. É impossível retirar as tosses do auditório, e também, quando alguém se levanta, é possível ouvir os barulhos de seus passos. Numa gravação do Anel, de 1953, de Clemens Krauss, em Bayreuth, no Prelúdio do Ouro do Reno, eu fiquei chocado com o nível alto de má educação do auditório, e em Bayreuth! Praticamente todo o Prelúdio foi acompanhado por tosses e “humhum” dos presentes. Isso incomoda, sobretudo numa música tão tranquila quanto essa.

Numa gravação de estúdio o regente pode sublinhar mais determinada passagem através de mixagens, assim como adicionar sons extramusicais. Na gravação do Anel, de Sir Georg Solti, realizada para os estúdios da Decca nas décadas de 50 e 60, foram incorporados vários elementos não presentes nas partituras, mas que ajudaram a criar a atmosfera conveniente. Por exemplo, no Crepúsculo dos deuses, na cena do chamado de Hagen, no segundo ato, Solti pediu que construíssem uma espécie de berrante para ser tocado pelo personagem, segundo o maestro, o som mais gutural do berrante seria mais adequado à cena do que a trompa geralmente usada.

A questão do balanço sonoro é muito mencionada quando o assunto é comparar gravações ao vivo com gravações de estúdio.

Embora a tecnologia tenha ajudado as gravações ao vivo nesse aspecto, as gravações da era de ouro do canto wagneriano, décadas de 30, 40, 50 e 60, do século passado, sofrem com um certo desequilíbrio em algumas passagens. Em certos momentos, os instrumentos estão muito abaixo das vozes, em outros, estão mais acima. Por vezes, nas gravações mais antigas da década de 30, não notamos os sopros de metais, que parecem apagados e distantes.

Porém, como mencionado, a tecnologia vem surpreendendo os fãs das gravações ao vivo. Nas gravações da década de 60 para cá, esses problemas são bem menores.

As gravações de estúdio, além disso, não capturam aquele senso de presença que sentimos, a atmosfera do teatro! É tudo artificial demais, plástico demais.

Por isso as gravações de estúdio podem enganar. Por exemplo e que me desculpem os fãs de Plácido Domingo, também sou! Mas a gravação que o mesmo fez, juntamente com Violeta Urmana, regidos por Antonio Pappano, de cenas do Anel, é falsa. Domingo nunca encarou os papéis de Siegfried e Tristão no palco. Sua voz não suporta o peso deles. Cantá-los em uma gravação de estúdio foi deselegante, para dizer o mínimo e não convenceu ninguém. Domingo, a partir de determinado ponto de sua carreira, encarou, e com dignidade, os papéis mais leves para tenor de Wagner, como Lohengrin, Walther e Parsifal, Mas Tristão, Siegfried, Rienzi ou Tannhäuser, nunca ao vivo! Mas “deu certo” com a ajuda da tecnologia…