*Alexsandro Alves
Em 1812, Viena possuía 200 mil habitantes. Desse número, cerca de 10% eram de mulheres que trabalhavam integralmente ou, meio período, com prostituição. A maioria delas, volume excedente da Revolução Industrial, que não conseguia arrumar outro emprego. Havia ainda um preconceito velado contra mulheres casadas com operários, o que fazia com que certos empregos, como o de domésticas em casas de família, fossem difíceis de conseguir e, assim, o caminho para a “vida fácil” surgia como única e difícil opção. Aos jovens do sexo masculino burgueses ou nobres, era incentivada a convivência nos prostíbulos, como forma de iniciação e, também, para aprender “o que não fazer com a esposa”. Estes rapazes não deveriam casar muito cedo, sobretudo os burgueses, que deveriam, antes do casamento, estarem com suas carreiras bem definidas. Assim, na era moderna, o comércio de corpos femininos tornou-se uma rotina masculina ligada às novas vivências e exigências trazidas pela Revolução Industrial.
- Beethoven era assíduo frequentador de bordéis. Sua relação com as prostitutas, no entanto, era bem volátil – como foi, sempre, qualquer relação pessoal do compositor. Para Beethoven, a prostituição era uma perversão do amor. Isto fica claro em suas cartas e diários. Assim como ficam claras as angústias e a solidão que sempre o levavam aos mesmos ambientes que condenava em sua privacidade. E é exatamente entre essas idas e vindas aos bordéis de Viena que Beethoven compõe a Sinfonia op. 92.
- A Sinfonia n.º 7, em Lá Maior, op. 92, é desse período da vida de Beethoven. É um momento dos mais angustiantes em sua existência. A quase completa falta de dinheiro aliada ao seu desleixo natural, o fariam perambular de rua em rua, de bordel em bordel de Viena, sujo, despenteado e irado. Vários de seus amigos, assim como comerciantes e trabalhadores em geral da cidade, lamentariam o estado descuidado do compositor. Ele era uma figura admirada em Viena. E há um certo tabu em se admitir que a gênese e a composição da Sétima estejam ligadas, ainda que indiretamente, de fato, à vida dissoluta ao qual precipitava-se.
- Ela estreou em 8 de dezembro de 1813, na Grande Sala Redouten, da Universidade de Viena, sob a regência do compositor, em um programa que também incluía a famigerada “Sinfonia da Vitória”, op. 91, (também chamada de “Vitória da Batalha” ou “Vitória de Wellington”), que foi idolatrada em sua época, mas hoje está quase esquecida, faz parte daquelas obras desprezíveis que Beethoven compôs por necessidade financeira. No caso dessa obra, a op. 91, por mais populista que fosse, por mais indigna que fosse, sem qualquer inovação ou cuidado estilístico, Beethoven encheu os bolsos. Ele aproveitou-se da onda nacionalista que inundava a todos devido às derrotas sofridas por Napoleão e compôs uma obra que é uma anedota ruim de sua Terceira. Essa estreia ocorreu alguns meses depois da Batalha de Leipzig, uma batalha decisiva nas Guerras de Libertação, que terminariam por derrotar e exilar o Imperador Napoleão. Era mais uma chance de Beethoven atirar suas balas contra Bonaparte. Mas ele não o faz.
- Se o op. 91 é artificial, bombástico e vergonhoso, talvez o pior dos trabalhos dele, composto por uma boa soma de dinheiro, o op. 92 é bem diferente. Na Sinfonia em Lá Maior, Beethoven pressente sua terceira fase. Ainda não chegou lá, mas está às portas. O heroísmo da segunda fase, na Sétima, está deslocado. Essas duas obras lidam com acontecimentos políticos importantes na vida europeia de modo geral: as derrotas de Napoleão. Porém seus resultados finais são bem diferentes. O seu concerto de estreia foi um ato em memória dos soldados mortos nas batalhas. Mas a música não é militar, no caso da Sétima, como ocorre nas Terceira e Quinta sinfonias.
- Talvez o contato com as misérias modernas trazidas pela Revolução Industrial, a prostituição entre elas, tenha tornado essa sinfonia mais humana. A prostituição não é criação moderna, obviamente, porém a modernidade intensificou a sua demanda e Beethoven tinha um olhar social e político bastante intenso.
- Essa humanização fica evidente no segundo movimento da sinfonia, o “Allegretto”. É, assim como o segundo movimento da Terceira, uma marcha fúnebre. Mas aqui, a música cresce gradualmente em intensidade, aos poucos, nós acompanhamos seu desenvolvimento à medida que as cordas intensificam sua melodia e um ritmo se instaura inexorável em todos os instrumentos. Esse ritmo surge logo no início do movimento. É uma marcha fúnebre introspectiva, diferente da marcha da Terceira. Ao ouvirmos a marcha da “Eroica”, nós sentimos terror; ao ouvirmos a da Sétima, nós fechamos os olhos e baixamos a cabeça. A marcha da “Eroica” é em memória de um “grande homem” idealizado por Beethoven. A da Sétima fala de pessoas reais mortas em combate. Gente comum, muitas delas filhos dos espectadores que estavam no auditório. Soldados, a maioria, pobres. Não é sobre um general idealizado, é sobre gente de carne e osso. Sem dúvida, é o movimento sinfônico mais belo, avassalador e nobre de Beethoven, com exceção dos da Nona.
- Nesse movimento, após a marcha fúnebre, o clarinete e o fagote executam uma melodia da ópera “Fidélio”, também de Beethoven, melodia que ocorre, na ópera, quando o personagem Florestan, no segundo ato, canta “Euch werde Lohn in bessern Welten”: “Você será recompensado em mundos melhores”. O movimento então se desenvolve com o tema da marcha fúnebre e este extraído da ópera. Eu não consigo escutar este movimento apenas sentindo a dor e a consternação por familiares mortos. Há também a miserabilidade tanto de Beethoven, no período, quanto daquelas mulheres vienenses da periferia da cidade. Ademais, por conta da op. 91, até Beethoven vendeu-se por dinheiro. É uma marcha intimista: há a morte social, vivenciada pelo compositor, inclusa.
- O que mais chama a atenção nessa obra, como um todo, é o forte impulso à dança. E Beethoven repete aquela estranheza que tomou conta do teatro na estreia da Terceira: encadear, em uma música com significados militares, temas de dança. Lembremos que o movimento final da “Eroica” é repleto de temas de um balé de Beethoven, “As Criaturas de Prometeu”. Embora esse peso militar se esvaia na Sétima, a obra tem ligação com acontecimentos militares contemporâneos. Principalmente os terceiro e quarto movimentos são apoteoticamente dançantes, orgias de danças. Selvagens e beethovenianas, diga-se.
- A sinfonia tem quatro movimentos: “Poco sostenuto – Vivace”, “Pouco sustentado – Vívido”; “Allegretto”: “Rapidinho”; “Presto”: “Muito rápido” e “Allegro con brio”: “Rápido com brilho”.
- O obra tem 40 minutos de duração e, abaixo, um link para uma gravação regida por Christian Thielemann.
- https://www.youtube.com/watch?v=T7CjuvE8oFA&t=2009s&ab_channel=250thChannel