• search
  • Entrar — Criar Conta

OS GRANDES MAESTROS, 3: Herbert von Karajan

35 anos após sua morte, o poderoso maestro austríaco permanece amado e odiado ao extremo pois Herbert von Karajan corporificou à perfeição a figura do maestro onipotente.

*Augusto Valente

[email protected]

Para muitos, Herbert von Karajan personifica a essência de tudo o que é sublime na música, para outros, um déspota. Mas o que é a obra de arte senão a exigência férrea por desvendar a perfeição que há no nosso espírito? Essa perfeição só se mostra às custas, por vezes, de uma obediência cega a si mesmo. Eis Karajan! (Alexsandro Alves; no original de Augusto Valente, essa citação não existe).

 

Foto: picture-Alliance/Imagno/F. Hubmann

“Ele tem o poder de vida e morte sobre as vozes dos instrumentos; alguém há muito silencioso falará novamente, sob o seu comando. O aplauso que recebe é a antiga saudação ao vencedor, e a dimensão de sua vitória é medida por seu volume. Fora isto, nada conta; tudo o que a vida de outros homens contém é transformado para ele em vitória ou derrota.”

Esta citação, do livro do filósofo Elias Canetti Massa e poder, descreve a figura do regente como corporificação do poder, “o ditador na esfera estética”. E – pelo menos este é o consenso entre seus detratores – a definição parece aplicar-se como uma luva a Herbert von Karajan.

Obedecer sem perguntar

Autoritário, exibicionista, tirânico, ou músico genial? 35 anos após sua morte, o regente austríaco desperta debates acalorados.

Por falar em tirania: inquirido sobre por que preferia reger a Filarmônica de Berlim à de Viena, Karajan respondeu: “Se digo aos berlinenses que deem um passo à frente, eles dão. Se digo aos vienenses para darem um passo à frente, eles dão. Mas aí perguntam por quê.”

A capital alemã agradece: em comemoração póstuma dos 90 anos do músico, a rua Matthäikirchstrasse teve seu nome mudado em 1998. Desde então, o endereço da sala de concertos da Filarmônica de Berlim eterniza aquele que por mais tempo foi seu maestro titular: Herbert von Karajan Strasse, 1 Rua Herbert von Karajan, 1).

Filiação vantajosa

Heribert Ritter von Karajan nasceu em uma família da alta burguesia de Salzburgo, a 5 de abril de 1908. Menino prodígio, aos 9 anos dava seu primeiro concerto como pianista, no renomado Mozarteum. Em 1929, mal saído do conservatório, já regia a Salomé de Richard Strauss na Festspielhaus da cidade.

Sua já meteórica carreira ganhou um impulso extra em 1935, com o ingresso no Partido Nacional-Socialista (NSDAP). Nesse mesmo ano, foi nomeado generalmusikdirektor – o mais jovem da Alemanha – da cidade de Aachen e fez turnês por diversas capitais europeias. Enquanto outros astros do pódio orquestral, como Bruno Walter e Arturo Toscanini, abandonavam a Europa fascista, Karajan se beneficiava com a associação ao regime nazista.

Três anos mais tarde, regia a Filarmônica de Berlim pela primeira vez e fechava contrato com a companhia fonográfica Deutsche Grammophon, a que permaneceu fiel por quase toda a longa carreira. Sua primeira gravação foi a abertura de A flauta mágica, de Mozart, à frente da Staatskapelle Berlin.

Apesar de haver desagradado pessoalmente a Adolf Hitler com uma récita desastrosa de Os mestres cantores de Nurembergue, de Wagner, o favoritismo de Hermann Göring – então primeiro-ministro da Prússia e superintendente da Ópera Nacional de Berlim – o manteve em posição privilegiada. O perfeccionismo, a determinação e o rigor, a aura de gênio e até mesmo a aparência de viril galã do jovem Karajan vinham ao pleno encontro da ideologia nazista.

Carreirismo ou convicção?

Os críticos mais impiedosos de Herbert von Karajan não lhe “concedem” nem mesmo o carreirismo como justificativa para a associação ao NSDAP: o maestro simplesmente haveria sido um nazista convicto. Prova disso seria o timing de sua dupla filiação ao partido.

O alistamento em 1935 fora precondição incontornável para a nomeação em Aachen. Porém, como assinala Karsten Kammholz, do jornal Berliner Morgenpost: dois anos antes – e cinco antes de a Áustria ser anexada por Hitler – ele já entrara para o NSDAP em Salzburgo. Porém esta primeira filiação foi cancelada por irregularidades no pagamento das mensalidades.

Kammholz apresenta mais um argumento: ao ser dispensado do cargo de generalmusikdirektor em 1941 – supostamente por estar pouco presente em Aachen – Karajan insistiu em servir ao regime de outro modo. Em plena Segunda Guerra Mundial, inscreveu-se para uma formação como piloto de batalha. Foi contudo, rejeitado, devido à idade.

O céu como limite

Terminada a guerra, o processo de desnazificação de Karajan foi lento. Embora exonerado na Áustria em 1946, a candidatura para a Orquestra Filarmônica de Hamburgo foi recusada em 1949, já que o processo austríaco não era reconhecido na Alemanha. A correspondência das autoridades norte-americanas encarregadas dos trâmites não deixa dúvidas: “nazista ardoroso”.

Somente a criação da República Federal da Alemanha, um ano mais tarde, desbloqueou a carreira pós-guerra de Karajan. A partir daí, sua ascensão foi irresistível. Semideus, ícone midiático, cuja imagem vendia tanto ou mais do que sua música, ele não se limitou ao poço da orquestra, arvorando-se até mesmo em diretor cênico de diversas óperas, com sucesso questionável.

Ao mesmo tempo, arrogante e com empedernimento digno de uma Leni Riefenstahl, o maestro dispensava sumariamente qualquer referência pública a seu passado político como mera reação de inveja impotente.

O “som Karajan”

Certamente algumas portas se fecharam: músicos judeus do primeiro escalão, como Isaac Stern ou Arthur Rubinstein, se recusaram a tocar sob sua regência. A própria Filarmônica de Berlim – da qual fora apontado titular vitalício já em 1955 – só pode se apresentar em Israel após a morte do regente, em 16 de julho de 1989.

Porém Herbert von Karajan não foi alvo somente de críticas ético-políticas ou mesmo pessoais – sua vida amorosa, seus cachês astronômicos, a paixão por carros e pelo luxo em geral.

Seu estilo de regência – ao mesmo tempo exibicionista e intenso, afetado e introvertido – foi muitas vezes ridicularizado. De fato: as últimas gravações em vídeo mostram o maestro quase sempre de olhos fechados, alienado da orquestra e da partitura, como se a música que se ouve fluísse diretamente de sua mente.

A própria “sonoridade Karajan”, voluptuosa, aveludada e ultrapolida – ou pré-fabricada e artificial, como querem alguns – também é frequentemente comparada, de forma desvantajosa, às escolhas estéticas de outros maestros: menos perfeccionistas, porém mais “verdadeiros”, mais dispostos ao risco.

***

 

Abaixo, uma demonstração do estilo de Karajan. Em um concerto na Philharmonie, de Berlim, em 24 de novembro de 1985. A intimidade do maestro com os músicos é tão intensa, que ele nem precisa de gestos muito largos, e parece que a própria expressão facial conduz, juntamente com os braços, a música. Sem dúvida e também com o apoio da tecnologia, foram mais de 900 gravações, Karajan conseguiu personificar a música erudita no século XX. Que pese seu passado político, mesmo assim, a perfeição sonora, esse oceano aveludado das cordas, o brilho grandioso dos metais e a placidez das madeiras, em conjunto com seu famoso e romântico legato, tornam suas interpretações irresistíveis. Ele pode ser criticado por muitas escolhas no resto de sua vida, porém suas escolhas estéticas precisam ser sempre consideradas como pontos culminantes da produção musical do século XX. No vídeo abaixo, Karajan rege Bruckner, a Nona Sinfonia, em ré menor.

https://www.youtube.com/watch?v=D40BeSxuSUg&t=2671s&ab_channel=%E5%85%89Choir