*Alexsandro Alves
Siegmund e sua irmã, Sieglinde, são os primeiros personagens humanos da Tetralogia. No prólogo, O ouro do Reno, os personagens são divindades, anões, sereias e gigantes.
Ambos são filhos de Wotan, porém com uma mulher e não com uma deusa. Um dos prazeres de Wotan é se disfarçar e rondar Midgard (o planeta Terra). Nessas andanças, procriou uma tribo de guerreiros ferozes chamada de wälsungo. Os wälsungos, filhos de Wälse (um dos nomes de Wotan) são odiados e temidos por todos. Com o passar do tempo, a tribo foi dispersa pelo mundo, e muitos assassinados.
Ainda menino, Siegmund teve sua casa e sua mãe, assim como outros familiares, queimados. Foi o único que escapou com vida, assim imagina. Desde então, ronda as florestas com o pai. Numa manhã, já adulto, não encontra o pai. Está só.
Quando inicia sua história épica na Valquíria, ele está fugindo de inimigos. É noite e ele corre desarmado pela floresta em meio a uma tempestade. Encontra uma cabana, construída ao redor de uma árvore e, exausto, entra, caindo o corpo próximo a uma lareira. É assim que conhece Sieglinde, casada com Hunding. Este chega e encontra o estrangeiro. Inicia uma série de perguntas e por fim, fica sabendo que o hóspede é membro da odiosa tribo que nicht heilig ist ihm, was andern herh, “não respeita o que é sagrado”.
Em uma daquelas gradações de ira que Wagner sempre soube calcular até o ponto culminante, Hunding diz que deseja matar Siegmund. Porém o homem é tão seguidor das leis, que permite que o intruso durma em sua casa apenas naquela noite, mas pela manhã: mein Wort hörtest du, hüte dich wohl!, “minha palavra é essa, tome cuidado!”. A lei da hospitalidade, mencionada nas sagas nórdicas, afirma que, a um inimigo desarmado, deve-se dar abrigo à noite.
Sieglinde coloca um sonífero na bebida de Hunding e desce para conversar com Siegmund. E assim, na terceira cena, os dois irmãos descobrem seu parentesco. Isso, ao invés de impedir a atração sexual que sentem desde a primeira cena, a intensifica. A irmã revela que um desconhecido fincou uma espada em uma árvore, vários homens tentaram arrancá-la, mas nenhum conseguiu. Com um só golpe, Siegmund a arranca – é a arma que Wälse havia lhe prometido na noite anterior àquela manhã em que não mais o encontrou. E com a lua iluminando a floresta, que agora está florida, o casal parte noite adentro.
Simbolicamente, Siegmund é o oposto de Wotan. Ele é um princípio feminino, não masculino. Como que para enfatizar isso, o percebemos sempre à noite e seu reconhecimento por parte da irmã dá-se sob a luz do luar. A lua, frequentemente, simboliza aspectos femininos.
A luz do sol ilumina aspectos objetivos, psicologicamente masculinos; a lua, com sua clareza suave, azulada, ilumina aspectos subjetivos da “anima”.
Ainda nessa questão, o primeiro ato da Valquíria é uma espécie de prelúdio, nas ideias e na concepção dramática, de Tristão e Isolda, e Tristão é um personagem feminino.
Todavia, Siegmund não realiza em sua plenitude a transformação que Tristão (e Parsifal) realizam. Porque o personagem ainda necessita de poder. Nisso se iguala ao pai.
E assim como Wotan, seu filho tenta unir o amor e o poder – e nessa tentativa é até mais ousado que o deus.
Ao retirar a espada que nomeia de Notung “Necessária”, da árvore, em uma cena poderosamente fálica, Siegmund a mostra para Sieglinde como um prêmio de casamento, afirmando que, com a arma, conquistou o amor da irmã. Como o vídeo a seguir não possui legendas, antes dele escrevo o libreto em português da referida cena, os quatro minutos finais do primeiro ato:
SIEGLINDE: Siegmund, assim te chamo!
SIEGMUND: Siegmund me chamas e Siegmund eu sou!
Testemunhe esta espada que seguro sem hesitar!
Wälse me prometeu que a encontraria na maior necessidade,
Ela é minha agora!
A mais sagrada necessidade do amor,
intensa necessidade em meu peito,
incita batalha e morte!
Notung! Notung! Assim te chamo, espada!
Notung! Notung! Aço poderoso,
mostra teus dentes para mim,
sai de tua bainha!
(arranca a espada da árvore)
Siegmund, o wälsungo, vê, mulher!
Como presente nupcial te trago a espada!
Por ela me caso contigo,
mulher abençoada
e te livro da casa de teu inimigo!
Para a primavera te levo,
onde a espada Notung te protegerá,
enquanto por amor eu queimar por ti!
SIEGLINDE: Te reconheço aqui, Siegmund!
Eu sou Sieglinde, tua irmã que arde por ti,
tu possuis a tua irmã com o valor de tua espada!
SIEGMUND: Mulher e noiva és para teu irmão:
floresça assim, sangue dos wälsungos!
Mesmo que da sua espada jorre aquele brilho ejaculado de vida e mesmo que de fato ame a sua irmã, sendo também correspondido, e um amor duplamente não institucionalizado, posto que adúltero e incestuoso, Siegmund ainda não se realiza enquanto homem livre. Isto nos é dito tanto dramaticamente quanto musicalmente.
A atitude do personagem de ansiar e de portar uma arma, se assemelha àquela necessidade de seu pai por poder. Além disso, musicalmente, e aí reside a principal prova do que falo, é que o motivo musical é o mesmo que, no O ouro do Reno, advertiu Alberich sobre a impossibilidade de adquirir poder e amar ao mesmo tempo:
Quando Woglinde adverte Alberich:
Nur wer der Minne Macht entsagt,
Apenas aquele que renuncia ao amor,
nur wer der Liebe Lust verjagt,
apenas aquele que afasta o desejo de amar,
nur der erzielt sich den Zauber,
apenas ele alcança a magia,
zum Reif zu zwingen das Gold!
de transformar ouro em poder!
Essas palavras de Woglinde são cantadas sob o mesmo motivo musical, nos instrumentos da orquestra, que se repete quando Siegmund canta:
Heiligster Minne höchste Not,
A mais sagrada necessidade do amor,
sehnender Liebe Sehrender Not, (…)
intensa necessidade em meu peito, (…)
No vídeo acima, a partir de 0:45, o leitmotif em questão está executado pelas quatro tubas wagnerianas mais a tuba contrabaixo, são acordes suaves, porém sinistros.
É essa música que incita Alberich a executar sua renúncia fatal para obter poder. Até mesmo visualmente a cena se assemelha: no Ouro do Reno, temos o ouro (um metal) encrustado em uma rocha que Alberich arranca; na Valquíria, temos uma espada (de metal) encrustada em uma árvore que Siegmund arranca.
Uma possível diferença, é que, com Alberich, temos uma renúncia consciente ao amor; com Siegmund, o ato se assemelha à cegueira de uma hybris.
O ato heroico do wälsungo torna-se o seu ato de arrogância desmedida: conciliar os inconciliáveis. E assim como na tragédia grega, o herói não precisa estar consciente de sua atitude, Siegmund permanece inocente e paga posteriormente por essa inocência, assim como sua irmã.
Esse casal de gêmeos são os personagens mais humanos de todo o Anel. A célebre soprano Leonie Rysanek, que cantou muitas vezes esse papel dizia: Eu acho Sieglinde a parte mais gratificante! Ela é humana, ela é crível, ela é calorosa, ela é apaixonada, ela sofre.
Podemos afirmar o mesmo de seu irmão. Eles funcionam em conjunto, como animus e anima, Eros e Psiquê.