As duas partes anteriores dessa série estão aqui e aqui.
Tristan und Isolde foi um desvio dentro dos planos de Wagner. Na década de 1840, ele havia traçado toda o corpo de sua obra dramática. Esquecendo suas três primeiras óperas, formula os planos para suas obras de O navio fantasma a Parsifal. Em seus diários estão O navio fantasma, Tannhäuser, Lohengrin, a tetralogia do Anel (O ouro do Reno, A valquíria, Siegfried e Crepúsculo dos deuses), Os mestres cantores de Nuremberg e Parsifal. De forma que toda a vida de Wagner foi para realizar o que já havia planejado antes. Nos escritos desse período não há qualquer menção ao drama de Tristão e Isolda.
Isso mudaria em 1852, quando conhece o casal Wesendonck (Otto e Mathilde), em Zurique. O casal era admirador da obra wagneriana e torna-se mecenas do compositor. A rotina de Otto, comerciante de seda, era de muitas viagens, raramente estava em casa. Assim, Wagner e Mathilde iniciam um caso amoroso. Dessa relação nasceram a maioria das obras para piano de Wagner, as Canções Wesendonck e no início da partitura da Valquíria, Wagner escreveu as iniciais G.S.M.: Gesegnet sei Mathilde, “Bendita seja Mathilde”.
Mas a obra que marcou esse período acima de todas estas foi Tristan und Isolde. Quando a concluiu, em 1859, Wagner já não estava em Zurique e seu relacionamento com Mathilde também terminara de forma escandalosa. Sua esposa, Minna Planner, descobrira.
Essa obra, não apenas musicalmente, mas dramaticamente também, é a mais revolucionária de Wagner. Em termos musicais é considerada o início da música moderna (coincidentemente, Wagner iniciou sua composição em 1857, mesmo ano da publicação de As flores do mal, de Baudelaire, marco da poesia moderna). Em termos dramáticos é a primeira ópera intimista. Quase nada ocorre no palco, a ação é sobretudo interna, psicológica e intimista.
Em termos filosóficos, Wagner realiza as tentativas de Tannhäuser e de Lohengrin de unir o sagrado e o profano, o erótico e o espiritual, e é nessa obra que sua concepção de homem e de mulher é integralmente executada pela primeira vez. Em quaisquer aspectos, é a obra-prima maior de seu criador.
Pode ser lançada uma interpretação schopenhaueriana nesta obra. Porém essa interpretação não pode negar os inevitáveis deslocamentos efetivados por Wagner dentro desse sistema filosófico. Antes de mais nada, Schopenhauer possuía uma aversão solene em relação às mulheres e ao amor sexual, Isso está expresso em muitos momentos de sua filosofia onde segundo Nietzsche tratou a sexualidade como inimiga pessoal.
Wagner não conhece a misoginia. E sobre sua concepção de amor, essa obra a expressa perfeitamente: o gozo sexual não interfere na contemplação espiritual, porque não existe essa separação no íntimo dos personagens centrais.
Essa separação, platônica, é negada peremptoriamente pelos protagonistas. A impossibilidade de realização desse amor que abarca o corpo e o espírito, unificando-os, é o que aciona nos amantes o desejo pela morte.
Essa impossibilidade existe por conta das leis, da moral e da honra que estruturam o mundo. Também por conta das divisões sociais, de gênero e mesmo gramaticais. No segundo ato, na Música da noite (O, sink hernieder, Nacht der Liebe – “Ó, desce sobre nós, noite de amor”), cada uma dessas separações é mencionada e negada, para assim chegar no que denominam de uma nova síntese, sem separações e dessa maneira, em um primeiro momento, Tristão torna-se Isolda e Isolda torna-se Tristão, em seguida, não há mais nem Tristão e nem Isolda, Tristão e Isolda, abole-se a dies süsse Wörtlein: ‘und,’ “a doce palavrinha: e”, como canta Isolda e têm-se a síntese Tristãoisolda, mas mesmo nessa síntese ainda se observa partes, então Ohne Nennen, ohne Trennen, neu’ Erkennen, neu’ Entbrennen, “sem nomear, sem separar, novo sentido, nova síntese”. Como no vídeo abaixo, que não tem tradução e o texto é muito longo para ser colocado aqui. A escolha desse vídeo especificamente é porque ele se inicia exatamente no ponto que detalho nesse parágrafo, a Música da noite, mas esse momento é mais longo, abaixo apenas os seis primeiros minutos.
Como personagem, Tristão é o oposto dos personagens centrais do Anel. Ele não almeja o poder. Sua índole e caráter são profundamente direcionados para a interiorização e o gradativo afastamento da moralidade do mundo, que é simbolizada pela sua honra e pela lealdade ao seu tio, o rei Marcos. A honra de Tristão, como fala, é uma das razões da infelicidade de sua alma.
Essas noções morais estabelecidas socialmente, Tristão as denomina de Tag, “dia”. Em oposição ao seu reino espiritual, Nacht, “noite”.
É psicanalítico que o personagem reconheça, no terceiro ato, que o primeiro reino da noite que conheceu foi o útero de sua mãe. E é para lá que retornará quando Isolda por fim lhe fechar a ferida.
Essa lembrança maternal, no drama, ocorre quando Tristão escuta um pastor, ao longe, tocar uma melodia que ele denomina de alte Weise, “velha melodia”. É uma melodia simplíssima e com um efeito dramático e filosófico dos mais profundos. Enquanto estava no útero materno e sua mãe acariciava a barriga, ele escutou a melodia. E de repente, quando o pastor a executa agora, sua memória é jogada para o passado, para aquele momento de paz profunda e absoluta, no interior do negro receptáculo maternal, da terra em que todos nascemos, da mulher.
É uma melodia ancestral. Simples e primitiva. Apenas uma nota por vez. E toda a solidão do homem nesse mundo é visualizada. Ao lembrar da mãe, também recorda a origem de seu nome. “Tristão”: pois sua mãe morreu ao dar-lhe a luz. Abaixo, a melodia. O vídeo não é da ópera e, sim, de um concerto:
Uma das coisas que mais admiro nessa obra é essa interiorização dos personagens centrais. A obra se inicia, no primeiro ato, com uma voz fora da cena. Abre-se a cortina e não vemos quem está cantando. Aos poucos, ato após ato, de fora para dentro, a história assume contornos da alma, cada vez mais se interiorizando; no terceiro ato, Tristão retorna ao útero de sua mãe em lembranças guardadas em uma peça musical e Isolda mergulha no espírito dele, desaguando na vastidão negra da criação, no delta sublime das estrelas.
Na cena, Tristão está ferido. No final do segundo ato, ao romper do dia, o rei Marcos e sua comitiva flagraram a rainha Isolda e o cavaleiro Tristão. Melot, seu melhor amigo, o desafia para um duelo, por ter maculado a honra do rei!, ao invés de lutar, Tristão se joga na ponta da espada de Melot. Agora, em seu castelo Kareol, espera a chegada de Isolda.
O Tristão de Wagner é diferente do Tristão do mito. Wagner reinterpreta esse personagem retirando dele todas as atitudes violentas e brutais que o caracterizam originalmente. Mesmo diante da vitória sobre Morold, marido de Isolda, que no poema épico medieval é amplamente celebrada, no drama wagneriano, não. Tristão sequer consegue encarar Isolda pelo ato. A fortaleza da alma de Tristão não reside nas armas. A posse de arma, bem como sua horrenda finalidade, vêm como imposições do meio e não como um desejo íntimo. Meio esse que ele despreza e que lhe causa sofrimento. Suas únicas atitudes de fato violentas são contra si mesmo, quando por três vezes tenta suicídio.
Quando Isolda chega, Tristão está caído, praticamente morto. Mas ainda lhe restam as últimas forças e, olhando para ela, diz: Isolde! Morrendo em seguida. Isolda fecha os olhos e, enquanto seu marido, o rei Marcos, lhe fala, ela conversa, em silêncio, com seu amado. Não diz mais uma única palavra para ninguém no palco.
Os momentos finais são da Liebestod, “Morte de amor”, mas Wagner denominava de “transfiguração de Isolda”.
Musicalmente é uma repetição de parte da música da noite do segundo ato, mas agora cantada apenas por Isolda.
E nos acordes finais, os dois se unem no Infinito.
Em uma entrevista, perguntaram para Ivo Pitanguy qual o sentido da vida?
A resposta do cirurgião plástico foi: para descobrir o sentido da vida, eu sempre digo para meus pacientes, escutem Tristão e Isolda.
Abaixo, uma versão completa e recente do drama, em Bayreuth, dirigido por Katharina Wagner. O vídeo tem legendas em português e a imagem tem muita qualidade.