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Os mapas de um tesouro esquecido

Colaborador de Navegos interpreta e disserta sobre uma coleção de arte produzida por artistas alemães do lado Oriental e reunida por um diplomata brasileiro, nascido no Acre, que descortina a um tempo, aos olhos do mundo, esperança e liberdade.
  • Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Assim Karl Marx (1818-1883), vaticinou sobre as instituições burguesas. Em seu Manifesto Comunista (1848), afirma que os sonhos e ideias da burguesia são “castelos no ar”, lindos horizontes de fantasia que escondem a corporeidade de mostrengo dos tempos modernos. No primeiro capítulo de sua obra mais proeminente, O Capital (em três volumes, publicados entre 1867-1894), ele vaticina de forma ainda mais categórica, que “tudo no capitalismo tende a se tornar mercadoria”. Inclusive a religião, inclusive a arte. Inclusive as pessoas.Francisco Chagas Freitas é um colecionador de arte brasileiro que colecionou um acervo inigualável por vários aspectos. Sua coleção é formada por quadros de pinturas e desenhos de artistas alemães do leste, a Alemanha Oriental, são mais de 1200 obras. Viveu na parte socialista de Berlim durante um bom período e lá se interessou pela arte da República Democrática Alemã (RDA) e pela vida de seus artistas.A vida na Berlim Oriental é controversa. Inclusive no documentário estas posições contrárias são mostradas, há um momento em que num programa de TV vários artistas expõem suas opiniões sobre o assunto e se nota que a vida sob o socialismo não possuía uma visão centrada, havia os detratores, porém também havia os enaltecedores do sistema. Se abstrairmos determinados posicionamentos extremados, é fácil notar que a democracia ocidental em muito pouco difere da democracia oriental. Sobretudo no trato com a arte.Evidente que o ocidental, afeito aos seus castelos rosas em seu céu azul de verão, proclamará a liberdade como um dos pilares da civilização – custa ir aos Estados Unidos macarthista para se ter uma ideia dessa liberdade americana nos pós-Segunda Guerra, a paranoica caça às bruxas contra artistas, universitários, e qualquer um que pensasse diferente? Como disse, há mais semelhanças do que diferenças cabais.

    O interesse do senhor Francisco das Chagas Freitas por estes artistas perpassa questões estéticas e antropológicas. No plano estético, estes artistas estão mergulhados no chamado realismo socialista.

    O realismo socialista foi um movimento estético que predominou nos países soviéticos e que se contrapunha a uma arte de caráter mais elitista, denominada de formalista, pelos gestores estatais. Durante o período soviético era comum o embate entre realistas e formalistas. Poetas como Maiakovski ou compositores como Shostakovitch (1906-1975), foram acusados de serem formalistas em alguns momentos de suas carreiras.

    Para compreender com mais clareza os objetivos de uma arte estatal como a inaugurada pelos bolcheviques, precisamos entender a pobreza intelectual e educacional aos quais a grande parte da população russa estava sujeita nas mãos do czarismo. Praticamente toda a Rússia czarista era um povo de analfabetos. A bem educada família do Czar Nicolau II propagava que educação não era necessária e, em certos aspectos, seria nociva para o povo. Quando a Revolução de 1917, liderada por Lênin (1870-1924), obtém vitória, uma das primeiras políticas do novo regime comunista foi educar o povo, mesmo que este não quisesse ser educado, e muitos não queriam mesmo, devido à forte tradição czarista. A cada nova escola que os bolcheviques erguiam, a tensão entre o povo aumentava devido aos antigos admiradores da família do czar, que se negavam à educação. Mas foram todos educados. Como parte desse processo educacional obrigatório, foi criada uma escola estética, para que o gosto e o entendimento da arte pudessem chegar ao mais simplórios dos russos. Esta escola foi o realismo socialista. Que se caracterizou por uma abordagem simples, e simplista, da vida. Temas como trabalho, onde o proletário estava sempre no centro das questões, eram o preferido. Evitava-se temas mórbidos, e a força e coragem, aliados à alegria e à felicidade deviam dar o tom. Mas sobretudo, a expressão deveria ser fácil entendimento, porque o destinatário final, o povo, ainda caminhava a passos relutantes na educação formal. À medida que o povo crescia em entendimento, os resultados surgiam.

    E é nesse ponto que o realismo socialista não avançou a contento. O povo começou a querer mais da arte e de seus artistas. À medida que a educação avançava, era uma consequência lógica que o povo esperasse mais da arte. E o estado soviético se negava a isso. Sobretudo nas mãos do tecnocrata Stálin (1878-1953). Há um fato curioso que ocorreu com a ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk (1934), de Shostakovitch. Acusada de ser formalista demais, a começar pelo título, que trazia referência a uma personagem de Shakespeare e que o povo russo não conhecia. Mais tarde, o compositor mudou o nome da ópera para Katarina Ismailova, que além de ser o nome da personagem central do drama, era, por fim, um nome comum na Rússia.

    No entanto, esse povo que se alfabetizou graças às políticas comunistas, agora estava desejoso de mais, e o estado já não poderia mais abarcar em toda a sua dimensão estes desejos. Porque a Guerra Fria se intensificava e a URSS por completo estava nas mãos não de um Trótski (1879-1940), mas de tecnocratas como Stálin e Khrushchov (1894-1971).

    E é essa dimensão humana, antropológica, que a coleção do senhor Chagas Freitas abarca. Ao longo de sua vida no país socialista, seus laços fraternos com uma gama muito grande de artistas, desejosos de produzir e de vender suas criações, ganha voos que abarcam uma ânsia de liberdade que vai além de qualquer muro ideológico, seja do lado ocidental seja do lado oriental dos fatos.

    Há uma nostalgia tão intensa que perpassa as vozes de cada um dos artistas retratados, que muitas vezes a emoção apenas fala através do silêncio e das lágrimas. Nos identificamos em tudo com o grito desses artistas e de suas obras. Nos identificamos com as ânsias pela liberdade de criar além do proposto pelo estado, nos identificamos com a vida de pessoas que, alheias ao seu redor, viveram suas existências como que impedidos de sentir. Mas sentiram. Sentiram graças à transgressão do espírito humano que sempre se rebelará contra qualquer atitude conservadora seja de que estado for, de esquerda ou de direita. A arte não tem muros. E nunca será ideológica em última análise.

    Estes artistas não sofreram apenas por estarem no lado oriental da Guerra Fria e fazerem oposição ao lado ocidental, mesmo que em certos casos, uma oposição forçada e não desejada. Porém fica claro que quando estes artistas expõem suas obras, mesmo em cidades que antes estavam no lado oriental da Guerra Fria, como em Weimar, o desagrado e o desentendimento de suas produções se colocam em termos de alarmante e injusta comparação. E a infâmia dessas exposições são ainda mais chocantes do que o realismo socialista.

    Para o alemão, esta arte é menor. E numa exposição a colocaram ao lado de quadros da coleção de Adolf Hitler. Triste, desavergonhada e falsa pareia.

    Esquecem que o centro cultural nazista era Bayreuth, que permaneceu no lado ocidental da História? Esquecem que Hitler, em sua extrema-direita sangrenta, proclamava que seus maiores inimigos eram os comunistas?

    Os artistas orientais, ultrajados, removem seus trabalhos da exposição, indignados com tamanha deslealdade, patifaria e descompromissos histórico e social pós-queda do Muro.

    A coleção do senhor Chagas Freitas precisa ser avaliada e conhecida. Há um peso histórico e político imensos em cada um de seus itens, além disso, há uma leveza humana. É necessário um estudo da importância estética desses criadores, tanto à luz do panorama político de seu tempo de criação quanto de seu significado para os dias atuais. Nesse aspecto, os temas das obras podem revelar a permanência do caráter humano em tempos de Guerra Fria, como talvez nenhuma outra coleção possa ser capaz de mostrar.

    Em muitos momentos nossa consciência política, ao presenciarmos a solidão desses artistas, também vaga pelo Brasil da ditadura militar, onde se perseguia e se matava por pensar diferente. Talvez seja por isso que o senhor Chagas Freitas tanto tenha se interessado nestas obras e nestas pessoas. Nós também tivemos nosso Muro de Berlim, erguido de forma invisível, mas que tinha o peso de chumbo, e foi de chumbo para muitos cidadãos do país. Todavia a História não é lugar para pieguismo ou sentimentalismo. O que difere ou iguala nosso olhar hoje do olhar de quem viveu a barbárie ontem é apenas as lentas que preferimos colocar ante nossos olhos.

Em destaque, o diplomata Francisco Chagas Freitas,grande colecionador da Arte da Alemanha Oriental sob o domínio soviético; acima, obra do artista Max Uhlig, pertencente à sua coleção que já rendeu filmes e livros pela Europa.