Renato de Medeiros.
Quando Euclides da Cunha foi contratado pela Folha de São Paulo para escrever artigos sobre o conflito de Canudos ocorrido no interior da Bahia, o autor não imaginava o cenário apocalíptico que se seguiria ao seu encerramento. A sua relação com o exercito brasileiro foi conflituosa, uma relação de amor e ódio que mesmo terminando sua carreira como tenente reformado, nutria sentimentos de decepção pela corporação. O conflito também é um marco na cobertura jornalística brasileira e histórica na medida em que os artigos escritos pelo autor vão além da mera descrição do conflito.
Acrescente-se também uma analise geográfica, social e do clima da região já que Euclides da Cunha era formado em engenharia(verificar) fez uma analise imparcial, mesmo fazendo parte da comitiva do Ministro da guerra Macedo Bittencourt. Deve salientar que Euclides da Cunha não foi o único a relatar o conflito, existiam outros articulistas que cobriam o assunto, mas todos por serem ligados ao exercito condenavam o levante da “troia de taipa”. O que diferenciava justamente os relatos de Euclides dos demais era a tentativa de compreender o motivo do combate, suas causas e conseqüências que levou aquele povo a se levantar contra á republica e defender a volta da monarquia.
Os principais jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador cobriram toda a história da guerra e vários artigos noticiando os desdobramentos do combate eram relatados dando conta dos progressos e fracassos no confronto. A resistência de canudos se tornou mais do que um mero relato entre a resiliência de uma população faminta e miserável contra a truculência do exercito brasileiro que sempre defendeu interesses de si próprio do que proteger a população. Lendo os Sertões não é preciso constatar essa conclusão do escritor, pois “o Sertanejo acima de tudo é um forte” assim escreve Euclides da Cunha. Para acabar com Canudos foram deslocado 12 mil soldados que ao final do combate deixou um saldo de 25 mil mortos, demonstrando o panorama desproporcional de violência e desdém a qual as vidas nordestinas sempre é vitima e continua sendo do resto do país.
Mas o que levou essas pessoas a seguirem Antônio Conselheiro e se isolar nas profundezas do nordeste baiano, essa seria uma pergunta interessante a se fazer, mas que erroneamente poderíamos respondê-la afirmando que foi somente a fé que as impulsionou a fazerem o que fizeram. Entretanto, as raízes dessa causa são mais profundas e que aparecem seus indícios na profunda pobreza, sede, fome e miséria em geral a que estava imersa essa parte da região brasileira esquecida pelos senhores do café e de farda da Republica. É fato que a parte do nordeste que não é dona da terra serviu e serve ainda hoje como reduto de votos submissos a área sul e sudoestes do país e que deixam migalhas para o resto do país. Nesse sentido, a resistência de Canudos transforma-se em um ato de insurreição política contra o modo elitista de excluir do projeto nacional de progresso uma região inteira, ou melhor, regiões já que o norte também esta inserida nesse projeto de exclusão.
Por isso é de imensa importância quando outras formas de narrar como uma História em quadrinhos mostrar a história de Canudos e sua resistência de forma imparcial, tentando investigar os motivos e razões que levaram pessoas simples a resistirem a forma opressora representada pelo governo da época que até então os esqueceu nas cercanias da miséria e só aparecendo para suprimir e exterminar. Infelizmente uma história que sempre se repete nas ações políticas do país.
Encontramos nesse quadrinho uma maravilhosa publicação da editora em seu selo de Quadrinhos na companhia, departamento editorial responsável pela publicação de quadrinhos relacionados a adaptações da literatura brasileira e também da produção de quadrinhos nacional e estrangeira. Essa edição toma como base a obra Os sertões de Euclides da Cunha tendo como responsáveis por adaptá-la de forma moderna e artística os autores Carlos Ferreira responsável pelo roteiro e Rodrigo Rosa pelas ilustrações internas e capa do quadrinho.
Vale destacar o magnífico trabalho da dupla, Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa na adaptação do livro “Os sertões” de Euclides da Cunha. Porque para quem trabalha com adaptações da literatura em quadrinhos sabe como é difícil manter a fidelidade a obra original ao mesmo tempo transmitir para o leitor a experiência dos sentimentos ocasionados por sua leitura e nesse caso os dois artistas estão de parabéns. Deve-se ressaltar que Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa foram certeiros na forma como retrataram o conflito, utilizando-se de simbolismos representados através de galhos secos das plantas para mostrar a fome e a sede característica do sertão nordestino, além da rusticidade, interiorismo e simplicidade dos desterrados, deserdados da pátria.
O roteiro de Carlos Ferreira consegue sintetizar em aproximadamente 90 páginas os principais pontos da trama, seus conflitos e desdobramentos de forma simples, mas sem perder a complexidade do assunto discutido. As soluções de seu roteiro procura sintetizar as partes mais importantes da narrativa euclidiana do combate, buscando apresentar os bastidores da politicagem dos governantes e suas opiniões nada lisonjeiras sobre a região nordestina e seu povo, demonstrando o seu claro desdém pela região e desenvolvimento. A profundidade da trama é maravilhosamente bem construída e trata ou ressalta aspectos bastantes atuais e pertinentes hoje em dia. As incisões de Carlos Ferreira são cirúrgicas e não deixa que partes importantes do texto original se percam em sua adaptação. Claro que o roteirista tem de sintetizar muito do que é escrito em poucas palavras, mas o faz de forma ágil e precisa guardando muito do conteúdo do que foi escrito por Euclides da Cunha.
Já a arte de Rodrigo Rosa é outro atrativo a parte. Muitas vezes sombria e simples consegue transmitir as emoções corretas e impressiona quando representa as ações no conflito. A paisagem em seu traço ganha conotações fantasmagóricas que denuncia o desfecho que virá. Boa coisa não resultará de uma guerra assimétrica, onde os interesses são os piores possíveis e o desfecho só pode ser trágico. Aliás, a história de canudos retratado pelos artistas remete a paralelos com tramas que possuem desfecho trágico em suas narrativas. Pois se apóiam numa perspectiva determinista, esperado dentro das expectativas negativas do desfecho do conflito, pelo nível desproporcional de forças, o fim esperado e trágico certamente virá. Mas também semelhante ao fim trágico do conflito, o que resulta dele é positivo para parte vencida no combate. Porque a vitória sobre um povo esquálido e sofrido, resistente por tanto tempo as forças desproporcionais de um exercito opressor, tem um gosto amargo de derrota estabelecido no conquistador e que repercute até hoje.
A conclusão que se chega com a leitura da adaptação de Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa esta no que falar de um exercito que se mobiliza para oprimir e destruir seu próprio povo que procura apenas seguir sobrevivendo? Uma boa pergunta para uma resposta que ainda encontra-se por fazer até hoje, diante de tantas mentiras e trapaças que a política interna como externa insiste em não responder. A caracterização do cenário nordestino e seus personagens no traço de Rodrigo Rosa são sintéticos e econômicos, mas não quer dizer simples. As expressões dos personagens em sua arte conseguem mostrar o sofrimento do povo de canudos, fé e esperança dentro de um conflito que certamente renderá bastante reflexão ao publico leitor. Nesse sentido indico essa maravilhosa Hq, Os sertões de Euclides da Cunha adapatada por Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa para os leitores noviços e admiradores de HQs.
Em destaque, Monte santo, na Bahia, transformada em uma cidadela de Deus em traços.