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Os sinos da Matriz

Navegos publica mais um capítulo da série de Actas Diurnas, crônicas produzidas no curso de 50 anos pelo polígrafo Luís da Câmara Cascudo, graças a uma parceria celebrada pela revista com o Instituto Ludovicus, na pessoa de sua presidente, Damiana Cascudo Roberti Leite.

*Luís da Câmara Cascudo

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Os rádios tem popularizados os sons longínquos dos sinos históricos de Belém e os do Vaticano. A memória haloou de esplendor mas não falam tanto ao coração como vós, sinos pobres de primeira Igreja de Natal. Sei vossa vida e os episódios desse passado que segue o desabrochar da Cidade.

Chateaubrind cantou os sinos mas a eloquência mais sonora dar-lhe-ia o pequeno campanário de sua aldeia evocadora. Ela lhe lembraria a hora branca e virginal do batismo, com repique álacre e miúdo e as badaladas, profundas e lentas, anunciando a morte.

Tínhamos nós, naturalmente, na capelinha inicial, um sino pequenino. Na reconstrução da Matriz, abertas duas janelas na face norte da Igreja, aí ficou, com seu companheiro, um par humilde de cálices de bronze, voltados para baixo, espalhando avisos de Fé nos momentos de alegria e de angústia. Depois de meados do século XIX, as duas janelas foram convertidas numa só janelão. Cantou anos e anos, o ruidoso casal dos dois sinos, semeando sinais de vida que nascia e de morte avizinhada.

Quando se ergueu em fins de 1862, para onde viajaram os si nos velhos, reunidores da população  serena nos domingos claros de missa?

Ainda em fevereiro de 1863, o engenheiro Ernesto Augusto Amorim do Vale pedia o pagamento de 25 réis para Manuel Elias de Melo, proveniente de algumas obras feitas nos sinos da Matriz. Deviam ser sinos veteranos, desalojados do alto nicho, agora substituídos por um irmão, forte e sólido, vibrando musicalidade do alto da torre, quadrada e nobre. Para esse primeiro sino, deu a província 600 réis mas o preço era superior. Chegara a 801,649 réis, pagos pelo comerciante Domingos Henrique de Oliveira, em maio de 1863. Em setembro do mesmo ano, o Presidente Olinto José Meira informa que a torre, há poucos dias, recebeu o novo sino que lhe estava destinado.

O sino menor foi pago pela lei no. 716, de 4 de setembro de 1874, a Joaquim Inácio Pereira, a quantia de 301 à 453 réis, despendida na compra de um dos sinos para a Matriz da capital. É essa sua crônica. Simples e doce.

Podiam nossos sinos receber, na cercadura da bocarra escancarada para a solidariedade dos anúncios humanos, a gloria da velha glosa latina, enfeitando seus distantes irmãos em Portugal:

“Laudo deum, populum voco, congrego clerum”.

“Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro”.

Louvo a deus, chamo o povo, congrego o clero, choro os mortos, afugento as pestes, alegro as festas…

Nas tempestades, fiéis ao Concílio de Milão, tocavam os sinos.

Batizados com água e óleo bento, óleo para enfermos, exceção única, os sinos agiam contra os Demônios que dançavam nas tormentas, e se diluíam pelo mundo. Ventorum flagra fiant salubriter acmoderate suspensa. E a mão do Bispo devia ungir o sino com sete unções interiores e quatro exteriores, queimando perfumes no seu bojo, pedindo fazer descer o Espírito Santo todas as vezes que o sino soasse como baixara sobre Saul aos sons deleitáveis da harpa de David.

Quando os nossos sinos vibravam era uma mensagem a todos os espíritos esparsos nos limites da cidade melancólica. Reunia-os mentalmente, fundindo-os ao acento vibrante daquele idioma universal, falando pela boca metálica e entendido pelo coração. Há uma linguagem, um código, um estranho abecedário que atravessa os ares, indo, pelo som, como palavra dos Profetas, do ouvido às almas. Congregava a voz difusa da multidão. Repiques de missas chamadas Irmandades, dobres de finados, claridades musicais de batismos, compassado, era à saída do nosso Pai,  a extrema unção aos moribundos, espaçados, insistentes, alguém entrará em agonia e pedia que o ajudassem a morrer, orando: dez badaladas seguidas, nascia mais um cristão, nove batidas, era menino, sete era menina, tinir continuo de repique, quase sem intervalo, incêndio, três golpes cadenciados, tardos, derramando-se nas tardes como um óleo santo de tabernáculo, era o Ângelus, as Trindades. O sino avisava, congregava, defendia, chorava. Era uma entidade viva, humana e perpétua vigiando a cidade a Cidade, como uma sentinela, do alto eirado da torre senhorial. Ainda no orçamento municipal de 1886 e 1887, a Câmara do Natal consignava a verba anual de 60$ para pagar quem batia no sino a hora de recolher, como nos sinos da Idade Média corria, pelo tocsin, o apaga-lume, a hora tranquila da ceia,  da oração e do sono.

Sinos da matriz…testemunhas das vidas pranto das mortes, saúdo vossa história, sino, signum, sinal, arauto da solidariedade, guarda da fé,  soldado perpétuo em posto inerradável, gritando com voz de bronze, no meio das ventanias de todos os orgulhos, no turbilhão a poeira dourada efêmera dos homens, hora de Deus, no dia de César…

A República, 31 de  dezembro de 1939.