*Franklin Jorge
Asseguro – com a autoridade que a experiência confere – que não resulta em tarefa fácil escrever alguma coisa quando temos em casa esses graciosos, voluntariosos e inteligentes pequenos tigres domésticos a que costumamos chamar de gatos. Pikitita, Mel, Sophie, Preto Gil, Chapeuzinho, Pimentinha, Benji, D´Artagnan e demais outros, excetos os desconfiados e arredios como Zangado e Picaço que se mantém afastados, pulam sobre o teclado ou deitam-se sobre as minhas mãos, imobilizando-me os dedos ou fazendo o texto em processo de elaboração desaparecer da página. Geralmente, nessas ocasiões que não raras, opto por fazer uma pausa em meu trabalho e, em vez de continuar a escrever, passo a acariciar-lhes o dorso retrátil, sensível às carícias e ao toque.
Li, há muito, em alguma parte que, se deixarmos, se não resistirmos às seduções de seus carismas, eles passar a dominar nossas vidas e a dirigi-la de acordo com seus caprichos misteriosos, ciúmes, impertinências e idiossincrasias. Não é raro para mim recusar um convite ou um passeio, por exemplo, pelo temor de deixá-los sozinhos, por temer que se estressem ou se deprimam, sentindo-se sozinhos. Sou desses tutores incapazes de resistir às chantagens emocionais de um felino… Nobilitatis obligat.
Amo-os, desde pequerrucho no Estêvão, por ver-me às vezes refletido em suas pupilas de ágata e aço com partículas de ouro. Sobretudo pelo desdém aristocrático que destinam à bajulação, intrigam-me, assim como a sua voluptuosa independência e – por que não dizer – ao gosto que consagram aos lugares familiares, à solidão, à limpeza, à ordem e ao silencio que demandam dos livros e do espirito que habita uma casa.
Esse apreço e dedicação aos felinos transportam-me, emocional e afetivamente a um tempo já pretérito em que, menino ainda e inconsciente do mal que constrange o mundo, todas as tardes, após o vento Nordeste soprar e varrer aqueles bosques de carnaubeiras saía a passear à beira da estrada de piçarra vermelha, abraçado a uma velha gata de má índole que pertencera a Dione, minha prima que, em consequência de um parto infelIz, ficara órfã e se criara em nossa casa, entre o rio Assu e os tabuleiros do Panon.
Como todos os meninos saudáveis, dotados de imaginação, costumava vestir essa gata mourisca com peças do rico enxoval bordado a mão, sob a supervisão de Elenir Cazuzô, conhecida por suas habilidades de artesã, produzido para o meu nascimento no Ceará-Mirim. cujos bordados reproduziam contos e fábulas dos Irmãos Grimms e de La Fontaine. Dissimuladamente a gata me permitia que a embrulhasse em cueiros, pussesse-lhe o babador, o chapéu e a cobrisse com uma manta, depois do que a levava em passeio, até que sem prévio aviso um carro em disparada cruzava a estrada, assustando a gata, que espavorida pulava de meus braços e escafedia-se de mato adentro. Nos dias seguintes, era comum que aparecesse uma ou outra comadre de minha avó trazendo nas mãos uma dessas peças, dizendo à minha avó: Comadre Amélia, encontrei essa camisinha – ou esses sapatinhos, esse babador, esses cueiros – enganchados numa moita de xique-xique ou nos galhos dum pé de velame, e os devolvia, recebendo em troca algum mantimento, um sabonete, dinheiro.