*Franklin Jorge
Atriz de corpo e alma, Tony Silva é a prova cabal de que santo de casa, desde que tenha talento, faz milagre. De origem modesta, sem nome de família importante para abrir-lhe as portas, tem reluzido sempre que pisa um palco ou se expõe diante das câmeras, das quais, nos últimos anos, tem se tornado cada vez mais íntima.
Tímida ela não é, pois nasceu sob o fogo de Escorpião, signo que parece infundir em seus nativos uma certa predisposição para fazer valer a satisfação da própria vontade. Contudo, ela teima em nos fazer crer que é confusa e não sabe o que quer, certamente apenas para confundir o seu interlocutor. Afinal ela sabe muito bem o que quer e para onde vai, mas disfarça, como atriz que é, sempre em processo de criação. Assim é Tony Silva, uma mossoroense nascida e criada no velho e tradicional bairro de Santo Antônio, que, a rigor, são vários. Porém, nele, sempre prevalece o gosto do povo pelas festas, a começar pela do Padroeiro, envolta no halo ardente das fogueiras de junho, onde o milho verde costuma ser assado. Um bairro que, apesar do nome, tem, na opinião de Tony, uma vocação profana inquestionável. O Santo Antônio é, pois, uma festa móvel.
Os santoantonienses reivindicam para o bairro o berço do Carnaval mossoroense. Teria sido lá que Momo fez a sua primeira aparição na cidade, daí o gosto do seu povo pelas troças de rua, pela irreverência, pela pagodeira e, sobretudo, pelos ursos e papangus que atraem, assustam e divertem os meninos. Tony não sabe se seria o caso, mas um certo delegado cujo nome seria Bezerra ou Pereira, achou que o Pastoril, organizado por Maria-Meia-Garrafa, não era um folguedo adequado ao uso das famílias e acabou com ele, tirando da cena do bairro, numa clara manifestação de abuso de poder, o Velho desbocado e irreverente que interage com o publico, as pastoras faceiras e a Diana bicolor que conduz e estimula as companheiras, na disputa entre os cordões Azul e Encarnado. Tony só sabe que desde então o Pastoril, remanescente de uma cultura imortal e pobre, se perdeu e nunca mais animou a festa junina do Santo Antonio.
Quanto a Maria-Meia-Garrafa, apelido que ela supõe estar relacionado com o fato dessa senhora ter um bar e vender aguardente em retalho, Tony a viu pela última vez há coisa de dois ou três anos, numa esquina da Avenida Alberto Maranhão com a Rua Epitácio Pessoa, no bairro mesmo. Apesar do tempo decorrido a mulher parecia não ter mudado em nada, pois continuava uma negra baixa, bem feitinha de corpo, rechonchudinha, trajando bem, vaidosa da própria aparência. Como a vira há muito, muito tempo, fazendo a festa querida de todos.
Criada numa atmosfera dessas, não podia ser Tony senão uma atriz. Poder-se-ia dizer que o teatro está na massa do seu sangue, embora ela confesse que chegou ao palco por acaso, ao tempo em que fazia um curso profissionalizante no Eliseu Viana e recebeu o convite de um ex-professor – o atual vice-reitor Aécio Cândido – para participar de uma peça que ele e Crispiniano Neto estavam montando. Até esse momento, Tony ignorava completamente que havia um a coisa chamada teatro. A coisa mais próxima de teatro que era vira em sua vida terá sido o Pastoril, mais bailado do que drama, na verdade. A peça tinha um titulo singelo, “Circo, alegria do povo”, porém condizia com o espírito que norteara a sua infância de menina pobre e feliz de brincar ao ar livre, na rua, com as suas colegas e amigas. Eram vários grupos que se juntavam pela idade, para conversar, brincar de Tique, de Roda, ou, quando já taludinhas, para namorar. A partir daí passou a freqüentar a casa de Aécio a Rua Tibério Burlamaqui 65, para ensaiar e descobrir que a atividade do ator exige um grande dispêndio de energia. Mas, em troca, adquire uma maior consciência da realidade. Aprendeu assim que, duma certa maneira, os pobres são mais livres que os outros, pois não são obrigados a usar mascaras. São o que são. Sem disfarce. A arte, porem, não e tão simples como parece. O instrumento de trabalho do ator, por exemplo, e o sentimento, que não e palpável nem se deixa tocar. Só se pressente…
Tony teve a satisfação de reencontrar, como personagens dessa peça de estréia, talvez a primeira escrita por Aécio Candido, as mesmas personagens de sua infância: a Cirandeira, a Diana do Pastoril, a Cigana das Lapinhas, o Mateus do Boi-de-Reis, a… Ela se lembra que havia uma peça-dentro-da-peça que já denunciava as preocupações do autor com a questão social, no caso, com a reforma agrária, cujo personagem principal se chamava João Boa-Morte. Tony lembra que aceitou o convite assim meio de-brincadeira, sem pensar nas consequêcias e, principalmente, sem pensar em se tornar atriz. Entrou no grupo como entraria numa festa, para brincar e se divertir, completamente ignorante da gravidade que resultava do ato de aceitar o convite. Ela só tomou consciência da coisa no dia da estreia, quando se viu obrigada a viver o seu personagem. Relutou em subir ao palco. E só o fez porque Aécio, desesperado com a sua recusa, a empurrou em direção ao público. Ela nunca esqueceu do medo que sentira, de esquecer tudo, de fracassar diante das pessoas que enchiam a platéia do Auditório Epílogo de Campos. Sobretudo, lembra-se da data em que tudo isso aconteceu, há 27 anos, num dia 13 de novembro. O ano? 1980. Ainda hoje, quando sobe ao palco, sente ainda um pouquinho desse medo tremendo que sente todo ator, dizem, toda vez que sobe ao palco. Faz parte do oficio sentir esse medo, sempre, pois no teatro cada espetáculo e único. Um ator está sempre estreando. Não há como fugir dessa realidade, que é a realidade intrínseca do ator, em qualquer circunstância.
Desde então uma árdua caminhada ao entendimento de si mesma. O início de um aprendizado sem fim. Tudo isto ela vai revelando entre goles de capuccino, no meio da tarde, no intervalo dos ensaios de uma nova peça, “Deus Danado”, cujo autor, João Dênis, nascido em Currais Novos, e um norte-rio-grandense radicado no Recife. E um texto embebido de existencialismo e cultura nordestina, que nos obriga a pensar no mistério da própria vida. Quem somos? Para que vivemos? Por que fazemos isso ou aquilo? Será que a vida é isso mesmo…? Será a terceira produção da Cia. A Máscara, que ajudou a fundar e que já apresentou as peças “História de um Barquinho”, de Silvia Orthof, sob a direção de Marcos Leonardo. A segunda, “Medéia – um fragmento”, inspirada no clássico grego de Eurípedes, dirigida pelo argentino-maranhense Marcelo Flecha, está em cartaz há dois anos.
Sucesso não significa dinheiro. Quem faz arte em Mossoró não merece consideração. Ela diz a verdade brincando. Imagine uma negrinha dessas querendo ser independente! Era só o que faltava a Mossoró, uma negrinha querendo ser alguém. Mas, como todo genuíno artista, Tony é dessas criaturas renitentes que não aceitam um Não como resposta. Está sempre insistindo, isto é, representando e resistindo. E, sendo ela mesma, em sendo várias. Nós, artistas, temos o couro grosso, muito grosso. Aguentamos cacetadas, confessa, muito à vontade. Levamos cada cacetada. Mas renascemos sempre. Sempre renascemos das cinzas. Embora, aqui, não sejamos pagos como profissionais que somos. Aqui, apenas a Petrobrás, ao nos contratar, coloca sempre a questão da remuneração na frente. Eu queria que as outras instituições daqui tivessem o mesmo entendimento. Afinal, como artistas, somos tão pobres. E a pobreza nos tira inclusive o direito de pensar. Mossoró é uma cidade que tem mais bares que escolas, teatros, cinema e livrarias juntos. Há muito tempo, já tivemos um grande movimento cultural. Tivemos teatro… E, despedindo-se, acrescenta, Que boa tarde tivemos, conversando… Boa tarde, gentil senhor, gentis senhoras, boa tarde, boa tarde, boa tarde.