*De Luís da Câmara Cascudo
Outeiros eram tertúlias literárias, festas poéticas de exibição cultural, feitas em Portugal, nos parlatórios dos conventos aristocráticos no correr do século XVIII. Aí se juntavam poetas e fidalgos com as freiras saídas das grandes famílias ilustres do Reino e diziam versos, improvisando décimas em glosa aos motes atirados no momento. Depois eram servidos doces, pastéis de nata, filhoses, toucinho do céu, rebussados, roscas de polvilho, com vinhos delicados e de doce aroma. Eram filhos das reuniões freiráticas, as saudosas grade de doces, de renome social, com poemas, pão de ló, covilhetes de marmelada, morceias de Arouca, freqüentadas pelos peralvilhos blasonados que diziam rimas mastigando, nos átrios dos mais suntuosos conventos de Portugal, o manjar branco de Chelas ou o sequilho de Estremoz, Laus tibi, Domine. Viera do luxo sacrílego de D. João V e passara, mais ou menos dissimulado, sob a férula do Marquês de Pombal. Sob o reinado de D. Maria Primeira surgiram os serenins em Queluz. O outeiro ainda se arrastou até meados do século XIX em Portugal. Camilo Castelo Branco ainda assistiu e louvou.
Em Natal não havia convento de Santa Clara, nem confeitos de requintada feitura. Nem vinhos pagos, nem presentes. Nem reixa para ver freiras letradas, nem grupos vestindo seda, acompanhando à viola os ondulantes lundus do Padre Caldas. Era tudo pobre, simples, rústico, sugestivo.
Depois das festas religiosas, especialmente da Padroeira em novembro, armava-se um palanque, bem enfeitado de manjericão, espirradeira e malva, ao lado direito da Matriz. Não havia muita atração. Raros fogos do ar. Não sabíamos os segredos da pirotécnica. Terminadas as novenas, cada noite, todo o povo, os ricos, os pobres, os sisudos comerciantes, os rapazes azougados, especialmente as moças, de cachimbo enrolado, cintura alta, leve anquinha estufando o vestido, fina memória no dedo, alegria de coral no peito, flor para baixo (amor ausente) e olhos ternos, reuniam-se derredor do tabuado. Era o Outeiro. Era a prova das armas poéticas, a luta de improvisação, a batalha dos vates, os jogos florais nessa melancólica província. Os homens e as mulheres assistiam essa demonstração positiva de espírito, de verve, de espontaneidade. Trepava-se o Poeta naquelas alturas e de lá dizia: – venha mote! Alguém indicava um mote, sempre de assunto religioso, como Tota pulchra es Maria, Louvores a São José, As Dores do Bom Jesus. Mas não pensem que os poetas recitaram os versos improvisando-os dentro da unção ascética e mística dos motes. Aproveitavam para surrar os desafetos, para justar-contas com os boateiros, para fazer-rir. Era cômico, natural e curioso.
Aqui estão os exemplos. Em Fiscal denunciara Lourival Açucena ao Juiz de Paz, pelo crime de freqüentar Lapinhas e fazer assuadas. O Poeta, no Outeiro, glosa um mote sacro desta forma:
Gente? Que de o Fiscal? Deste cara de cuscuz
Por ventura se escondeu? Que foi nos denunciar
Ninguém há que dê notícia Ao Chefe, para aumentar
Desse velhote sandeu? AS DORES DO BOM JESUS?
Ou este, de João Elísio Emerenciano:
Das ventas duma polia Comandava um caboré.
Espirraram três xexéus E também um canindé
Quarenta e oito tetéus, Repimpado no seu pau
E cinqüenta e nove jias. Tocava num berimbau:
A quarenta e oito cotias LOUVORES A SÃO JOSÉ!
E Francisco Gomes, defendendo seu Pai a quem acusavam de viver sempre a meio-lastro:
Estou-vos muito obrigado Não deve ser zombaria
Em falar-vos de meu Pai. Muita gente já bebia
Pois Jajána quando cai Como ele já bebeu.
Ficareis bem agastado… E gloso por prazer meu:
Isso de gato amarrado TOTA PULCHRA ES MARIA!
Esse ambiente do Outeiro que os natalenses ouviram e palmejaram até 1885. É uma forma da Inteligência e da simplicidade de outrora. Pode não fazer saudades, mas não há mal em relembrar-lhe a existência romântica, satírica e sentimental…
A República, Natal, 25 de janeiro de 1940.
Fonte: Acervo LUDOVICUS – INSTITUTO CÂMARA CASCUDO