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Ouvindo A valquíria (Die Walküre)

Uma análise, cena por cena, da obra A valquíria, de Richard Wagner.

*Alexsandro Alves

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A escrita desse artigo de fato começou nesse https://navegos.com.br/renascimento-da-tragedia-ou-sua-morte/, enquanto estava escrevendo-o, muitos pensamentos invadiram-me a mente e um desejo de ouvir novamente A valquíria na íntegra foi crescendo. Como no final do artigo supracitado menciono uma análise da última cena do ato III, me indaguei: por que não ouvir A valquíria na íntegra?

Então iniciei uma nova audição desse drama tendo em vista alguns artigos para Navegos onde comentarei cena por cena. A valquíria se estrutura em três atos, cada ato precedido por um prelúdio e 11 cenas: três no primeiro ato, cinco no segundo e três no terceiro. Serão seis artigos: esse, com as duas primeiras cenas do ato I e mais cinco.

Para começar, quero explicar as gravações escolhidas. Eu conheço dezenas de Valquírias completas, em minha discoteca tenho seis gravações diferentes. É uma das minhas audições preferidas sempre. A que escolhi, ou melhor, as que escolhi, foram a de Karl Böhm (Bayreuth, 1967) e de Michael SchØnwandt (Copenhagen, 2006). Ou seja, uma clássica e outra moderna.

A de Böhm tinha que se impor mesmo, sobretudo pelo ato I, com Leonie Risanek e James King como os gêmeos Siegmund e Sieglinde. Porém está gravação só existe em áudio, nunca foi lançada em vídeo. Para uma apreciação em vídeo, escolhi a de Copanhagen, por conta do Hunding maravilhoso de Stephen Milling. Os links para ambas estarão no final de cada artigo.

A valquíria estreou no teatro Nacional de Munique, em 26 de junho de 1870, contra o desejo de Wagner. Porque esse drama faz parte de uma obra maior, em quatro partes: O anel dos nibelungos, que Wagner denominou de “festival cênico para três dias e uma véspera, sendo as partes as seguintes: O ouro do Reno (a véspera ou prólogo), A valquíria (primeiro dia), Siegfried (segundo dia) e Crepúsculo dos deuses (terceiro dia). Wagner pretendia que esse ciclo fosse encenado de uma única vez em teatro planejado exclusivamente para isso. Esse teatro seria a Casa dos Festivais de Bayreuth, que só seria erguido em 1876.

No entanto, o rei Ludwig II, da Baviera e patrono de Wagner, estava impaciente e exigiu a obra em seu teatro real. Com as insistências e ameaças do sereníssimo soberano, Wagner cedeu as duas primeiras partes, o prólogo e o primeiro dia. Quando o rei, em 1871, exigiu também Siegfried e Crepúsculo, o compositor se valeu de um truque das mil e uma noites- ele disse que a cada dia que compunha essas obras, mais ideias lhe surgiam e por isso tinha até medo que a obra nuca fosse concluída. Se o rei acreditou ou se deixou levar por Wagner, é impossível saber. Nietzsche estava na cidade e Wagner perguntou-lhe se ele assistiu à estreia em Munique: “nunca faria isso! Eu lhe respeito!”, teria sido a resposta do filósofo.

O fato é que o ciclo integral foi estreado em Bayreuth, na Casa dos Festivais, a partir de 13 de agosto de 1876, com O ouro do Reno, A valquíria estreou em Bayreuth em 14 de agosto daquele ano e as últimas duas partes, nos dias 17 e 18 de agosto – deveria ser dias 16 e 17, mas o cantor que fazia Wotan perdeu a voz assim que terminou A valquíria, e houve esse descanso necessário de um dia.

PERSONAGENS, por ordem de aparição:

Humanos:

Sieglinde, soprano; Siegmund, tenor; Hunding, baixo;

Deuses:

Wotan, baixo-barítono; Fricka, meio-soprano;

Valquírias:

Brünnhilde, Gerhilde, Helmwige e Ortlinde: sopranos;

Schwertleite, contralto;

Waltraute, Siegrune, Grimgerde e Rossweisse: meio-sopranos.

A ÓPERA

O Prelúdio da Valquíria, bastante curto e intenso, descreve a fuga de Siegmund através da Floresta Negra numa noite em que se forma uma tempestade. Os 36 primeiros compassos mantêm as mesmas figuras musicais: os 12 violoncelos e os 4 primeiros contrabaixos executam em stacatto uma figura em ascendente e descendente; os 16 segundos violinos e as violas executam em tremolo uma persistente nota ré. Essa figura ascendente e descendente dos violoncelos e contrabaixos nesse momento é sobretudo rítmico, mas aos poucos se converterá em um tema melódico – o motivo musical de Siegmund. O persistente ré dos violinos e violas é algo como o correr de águas que desabam. No compasso 37, no vídeo a partir do minuto 0:57 (a partir daqui, toda minutagem correspondente será colocada entre parênteses, sendo, prioritariamente, a gravação de Böhm a marcada, quando houver referência ao segundo vídeo, será indicado) entram as madeiras, clarões de relâmpagos que antecipam a trovoada iminente, quando, no compasso 61 (1:34), se erguem os metais, sobretudo as tubas wagnerianas, executando o motivo musical de Donner, deus do trovão e no compasso 80 (2:03) toda a orquestra é sacudida por violento estrondo dos tímpanos. A tempestade diminui e o stacatto das cordas graves assume sua feição melódica com a entrada de Siegmund em cena (3:50): Wer Herd dies aus sein (De quem for esta casa…), iniciando a cena 1 do ato I.

Sigmund entra exausto e despenca diante da lareira. Sieglinde entra em seguida, receosa (4:27): Ein frende Mann (Um estrangeiro…). Seu motivo musical nesses primeiros momentos é hesitante. Ao se aproximar do estranho, ele perde água: Ein Quell! Ein Quell! (Água! Água!). Ela, ainda assustada, corre e pega uma cumbuca de madeira com água e oferece ao estrangeiro.

Nesse momento, inicia-se um momento de íntimo erotismo. Um único violoncelo (6:31), depois acompanhado pelas outras cordas, preenche a cena com o motivo do amor. Isso é tão intenso que chega a ser um assédio. Notamos que o olhar de Sigmund está fixo em Sieglinde e por mais que seu tom seja doce e suave, é de fato íntimo e soa como se algo, serenamente, crescesse em Siegmund. É um momento de sublime intimismo, momentos assim, nesse ato inteiro, prenunciam Tristão e Isolda pela forte carga erótica, sensual e ao mesmo tempo, intimista. Embora ele cante sobre a água, o que de fato molha seu interior é a mulher diante dele:

Kühlende Labung gab mir der Quell, A primavera me deu água refrescante
des Müden Last machte er leicht; aliviou o fardo do viajante
erfrischt ist der Mut, sinto a coragem retornando
das Aug’ erfreut des Sehens selige Lust. os olhos se alegram com felicidade
Wer ist’s, der so mir es labt? Quem é esta que me revigora todo?

No entanto, a resposta de Sieglinde, seu tom e distanciamento, tão bem calculados musicalmente por Wagner, é quase um banho de água fria nas intenções sexuais de Siegmund. Ela afirma que

Dies Haus und dies Weib sind Hundings Eigen; Esta casa e esta mulher pertencem a Hunding
gastlich gönn’ er dir Rast: harre, bis heim er kehrt! Ele lhe concede sua hospitalidade, descanse até ele voltar!

Ela traz para ele hidromel, mas ele recusa, pedindo que prove antes. A desconfiança talvez paire na alma de Siegmund agora, já que descobriu que a mulher é casada. Ela bebe e depois torna a oferecer para o estranho que bebe. A intensidade do amor dele é poderosa, a orquestra desenvolve seus temas de forma sincopada, como que mil pensamentos arrebentassem a ocasião e não dessem tempo para conclusões, é uma melodia esquisita, porém marcante. Esses momentos (14:27 até a entrada de Hunding), em que apenas a orquestra se ouve são muito comuns em Wagner é foi uma das suas características composicionais que mais causaram estranhamento em sua época, pois momentos assim são para sinfonias, não para óperas. No palco, se espera que os personagens cantem constantemente. Parece que Wagner se pergunta “o que é ópera, o que é sinfonia?” e resolve minar as fronteiras rígidas dessas formas. Isso é um ponto que o fez e o faz ser tão moderno, essa invasão de uma forma na outra que torna o todo maleável e sem forma dentro dos padrões já estabelecidos.

De repente, a orquestra é tomada por um tema sombrio (15:20), é a chega de Hunding, iniciando a cena 2 (15:46).

Hunding, marido de Sieglinde, é um homem rico, dono de propriedades e conservador. Seu motivo musical (enunciado fortemente em 15:46) é como pancadas nas tubas wagnerianas, soa rude, brutal e seguro. Stephan Milling, no segundo vídeo, a partir de 16:35 e a enunciação precisa de seu motivo em musical em 16:41, tem o porte e a autoridade adequadas a esse papel.

Hunding pergunta sobre o estranho e Sieglinde responde que o encontrou exausto caído na lareira e que o tratou como um hóspede. Isso deixa Hunding tranquilo, pois é um guardados das convenções e a lei exige que forasteiros seja bem recebidos em qualquer casa durante a noite. No entanto, para silente espanto, Hunding nota uma semelhança entre sua esposa e o forasteiro (18:44 no segundo vídeo): “Como se assemelha à mulher, ele carrega no olhar a mesma serpente dela!”

Ao ouvir o forasteiro perguntar sobre onde está e quem é ele, Hunding, senhorial, afirma (18:31, no primeiro vídeo; 19:39, no segundo) que toda as terras em redor são dele e que ele é honrado por homens de iguais posses, sendo sua família a mais importante de toda a região. É uma afirmação que diz para Siegmund, nas entrelinhas, a posição social e econômica do anfitrião. Siegmund, por sua vez, conta sua história.

Friedmund darf Ich nicht heissen (20:36 no primeiro vídeo e 21:37 no segundo), ele é um solitário que perdeu sua tribo. Ela foi dizimada e destruída por invasores, restando apenas ele. O pai lhe ensinou a ser violento, o que ele não conseguia pacificamente, arrancava com a espada! E assim o filho cresceu. Seu pai se chamava Wolfe (lobo, em alemão) e ele se chama Wölfing (lobinho). Essa história causa apreensão em Hunding, este forasteiro vem de um clã indomável e ninguém pode ser feliz com alguém assim em sua casa. Lobinho continua sua a narrativa de sua saga e afirma que a vida lhe ensinou a odiar tudo o que os homens respeitam e a amar o que todos odeiam.

Sieglinde pergunta como um homem assim pode estar desarmado. Ele responde que perdeu suas armas recentemente em conflito com uma outra tribo. Ao narrar esse conflito, Hunding entende que está diante do homem que perseguia na floresta. Esse homem invadiu a festa de casamento de sua parentela para raptar a noiva.

Com aspecto carregado, Hunding, mais autoritário do que nunca, (31:24, no segundo vídeo), lembra que já ouviu boatos sobre uma tribo amaldiçoada, que não tem por sagrado o que os outros respeitam, reconhecendo o forasteiro como membro dessa tribo, agora deseja matá-lo. Porém as convenções sociais o impedem, mas durante a manhã, ele será morto, mesmo desarmado, pois não pode permitir que alguém tão contra as tradições permaneça vivo. Nesse momento, (de 33:18 até 36:03), é dominado exclusivamente pela orquestra, como ocorreu na primeira cena, mas os motivos musicais aqui são outros e sinistros, dominados pela presença despótica de Hunding. Hunding ordena que sua esposa suba para o quarto e a segue.

Siegmund é deixado sozinho.

A partir daqui, tem início a cena 3, para o próximo artigo.

Para o libreto em alemão/português acesse: https://www.projekt-gutenberg.org/wagner/walkuere/walk11.html Links dos vídeos citados, o primeiro vídeo, a gravação de Böhm:

 

o segundo vídeo, a de Copenhagen, 2006, esse vídeo tem legendas em português, acione o ícone “Legendas” no canto inferior direito do vídeo: