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Cronista da vida privada do Rio de Janeiro, antes e depois da chegada do Príncipe Regente e da Corte Portuguesa em sua fuga de Napoleão, documenta e descreve um dos momentos capitais de nossa história.

*José Vieira Fazenda – Médico e historiador, autor de Antiqualhas e Memórias do Rio de janeiro.

Mal haviam cessado, por ocasião da chegada da Família Real, o estrondo dos canhões, o bimbalhar dos sinos, o fulgor das luminárias, e já o povo desta cidade experimentava vexames pelo aumento repentino da população dela. Não faltavam, é verdade, gêneros alimentícios, nem estes subiram de valor. A carne verde conservou o antigo preço, a 25 réis a libra, e o mais seguiu na mesma proporção. Os aluguéis e os materiais subiram, todavia, bem como os jornais: um oficial de pedreiro, que então ganhava 200 réis por dia, em pouco tempo vencia já um cruzado.

Os preços da mão de obra, como era de prever, foram também gradativamente subindo. Como é sabido, acompanharam a Família Real muitos fidalgos, empregados públicos, a criadagem da rainha e dos príncipes e também numerosa multidão de vadios e de sujeitos sem eira nem beira, os quais embarcaram em busca de aventuras ou de melhor sorte. Os primeiros foram fartamente recompensados com pingues subvenções; para os segundos houve aqui lugares especialmente criados, nos quais foram encartados muitos aventureiros, distribuídos pelos corpos do Exército e Marinha, vencendo bons ordenados. A criadagem tornou-se em demasia exigente, e são bem conhecidas as façanhas dos chamados [texto truncado]. A dificuldade maior, porém, estava em encontrar pousadas para acomodar tanta gente. Para a comitiva régia não eram suficientes a antiga Casa dos Vice-Reis, ligada ao Convento do Carmo, a Cadeia e as casas construídas por Joaquim José de Azevedo, na praia de D. Manuel.

Muitos nobres e fidalgos foram residir no Convento de São Bento, consistório da Igreja do Rosário, Hospício e Jerusalém, na antiga Casa da Opera, de Manuel Luiz, e em outros estabelecimentos públicos. Em breve, porém, foi posto em prática o antigo direito das aposentadorias. O eminente publicista Hippolyto, no Carreio Brasiliense, impresso em Londres, clamava contra tão execranda medida, dizendo: “tenho de lamentar, que se adotasse ali o sistema antigo das aposentadorias, um dos mais opressivos regulamentos do intolerável governo feudal; o que não pode deixar de fazer o novo governo do Brasil odioso ao povo; porque, na verdade, apenas se pode sofrer um ataque tão direto aos sagrados direitos de propriedade, qual é o de mandar sair um homem para fora da sua casa, afim de acomodar outro, que a ela não tem direito”.

As aposentadorias eram ou ativas ou passivas: nas primeiras, certas e determinadas pessoas gozavam do privilégio de tomar a outrem a pousada para si. Tinham a graça das segundas outros indivíduos, que podiam conservar suas casas e não ser delas despojados, pelos que tinham a aposentadoria ativa. Segundo Pereira e Sousa, havia em Portugal o cargo de aposentador-mor, a cujo ofício pertencia, quando viajava o rei, partir adiante e preparar aposentos para o monarca e sua corte. A esse oficial cabia também a obrigação de decidir das questões com referência aos privilégios das aposentadorias. A ele foi dado o regimento especial de 7 de setembro de 1590. Já em tempos do rei Affonso IV exercia tão alto’ posto Ruy Mendes Cerveira, alcaide-mor de Abranches. Por decreto de 19 de julho de 1800 foi concedida a jurisdição de conceder aposentadorias aos corregedores do cível da Corte e da cidade, subrogados no lugar de aposentador-mor. Felizmente, segunldo lemos nos comentários das Ordenações, pelo emin’nte sr. Candido Mendes, a lei de 25 de maio de 1821 aboliu para sempre privilégios tão odiosos,  medida liberal, que foi adotada in oótum na lei brasileira, a 20 de outubro de 1823. Pois foi isso que, como uma praga, caiu sobre as cabeças dos míseros proprietários do Rio de Janeiro, os quais, naqueles tempos, não tinham o desafogo da imprensa, nem o patrocínio de certo presidente, que, por dê lá aquela palha, mete, em nome da União, o bedelho em tudo. O medo subiu de ponto, quando foi nomeado para o cargo de aposentador certo fidalgo de vida desregrada, conhecido por [texto truncado]! Fez de seu ofício uma verdadeira inquisição de iniquidades, diz abalizado escritor, chegando o seu pouco critério a conceder aos parentes de suas amantes aposentadorias para que eles agiotassem! Livraram-se de tão triste sorte os proprietários que viviam em casas modestas ou de mesquinha aparência. Quem, porém, era dono de qualquer sobrado não se furtava ao vexame de ver seus prédios tomados por qualquer fidalgo, gente do Paço, desembargador, militar, empregado civil e até criado. Nem as casas da Misericórdia escaparam; a Mesa por muitas vezes protestou, escudada nos privilégios que lhe eram inerentes.

Qualquer desses sujeitos passava por uma casa, e se esta lhe agradava, dirigia-se logo ao aposentador-mor. No mesmo dia ou no seguinte lá vinha o infalível meirinho e escrevia na porta, a giz, em letras garrafais, P. R. (príncipe regente), as quais eram traduzidas pelos capadócios do tempo: ponha-se na rua! O legitimo dono era obrigado a despejar o próprio domicílio, construído à sua custa ou herdado de seus antepassados. E ai do que recalcitrasse; iria para a cadeia arrepender-se de sua desobediência. Houve coisas estupendas, filhas da legislação do tempo. Conta o dr. Mello Moraes o seguinte: certo chefe de esquadra pôs aposentadoria em uma casa da rua da Ajuda, pertencente a d. Anna Justina, bordadeira de profissão. Essa senhora, prevalecendo-se, não de seu direito de propriedade, que não era respeitado, mas da circunstância de trabalhar também para a Casa Real, recorreu a todos os meios, chegando a queixar-se ao príncipe regente. Este mandou-a para o ministro, que nada fez. D. Anna viu seus trastes e roupas lançados à rua pelos beleguins. A pobre senhora, vendo-se assim ao Deus dará, foi lançar-se aos pés do chefe de esquadra e pedir por compaixão que lhe alugasse as lojas para ela habitar. O oficial de Marinha anuiu a este pedido, e então se viu a proprietária, para ter onde morar) a pagar aluguéis das lojas de seu prédio ao seu próprio inquilino de quem nada recebia!

Segundo ouvimos a pessoas contemporâneas, proprietários houve que, mandando construir casas, deixavam o exterior delas, até, os andaimes, e viviam em aposentos de telha vã e não rebocados. Só assim puderam escapar à sanha dos que gozavam das aposentadorias ativas. Muitos obtinham domicílios por meio do P. R. e os alugavam [texto truncado]· Alguns especuladores houve que, ao deixarem as casas, das quais não tinham pago um vintém de aluguel, apresentavam conta de fantásticas benfeitorias. Não tinham feito o menor conserto. O proprietário, para evitar chicana, pagava sem protesto e recebia o prédio em muito piores condições: tábuas arrancadas, vidros quebrados, paredes sujas, telhas partidas. Conta-se o caso de certo personagem que, quando tinha de acompanhar o príncipe a Santa Cruz, fazia das portas caixões para conduzir roupas.

Não eram só os prédios objeto do fatídico P. R.: trastes, carruagens, objetos de luxo e até os escravos. Estes, quando adoeciam, eram enviados para casa dos senhores, mas logo que se pilhavam bons iam apresentar-se ao sr. conde, marquês ou duque, que os retomavam ao seu serviço. Para os crioulos, sobretudo, era isto muito agradável, porque, além de viverem na pândega, usavam das librés agaloadas de seus amos, que nada pagavam de salário. Quem tinha seu moleque de estimação ou sua mucama com prendas, escondia, com medo do P. R.! Havia excesso de violência, luxo de abuso e de reincidências escandalosas. Houve senhor aposentado que se apaixonou, diz o dr. Macedo, três ou quatro vezes consecutivas por diversas casas, e para contentá-lo despediram-se também consecutivamente quatro famílias dos tetos sob os quais se abrigavam! Em nossa mocidade ouvimos sobre aposentadorias o seguinte fato, que mais tarde encontrámos narrado na obra do acima do citado dr. Macedo – Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro: Era então juiz de fora e interinamente aposentador o desembargador Agostinho Petra de Bittencourt. Era um homem verdadeiramente original, mas magistrado justo e severo. Andava ele já muito aborrecido com os arranjos de aposentadorias e cansado de meditar nos sofrimentos do povo, quando lhe entrou pela sala um fidalgo, que o visitava pela quarta vez.

Na primeira visita, esse fidalgo tinha pedido a aposentadoria em uma boa casa, que designava; na segunda, pedia nova aposentadoria em outra casa melhor; na terceira, vinha exigir mobília. E, não contente com tudo isso, apresentava-se pela quarta vez, declarando que lhe convinha muito um excelente criado ou, talvez, escravo, que servia a indivíduo que designou. O desembargador, sem dar a mais simples resposta, fez chamar sua senhora à sala e, apenas a viu chegar, disse-lhe: – Apronte-se, sra. d. Joaquina, estamos em véspera de separar-nos: este nobre fidalgo já me pediu casa, depois mais casa, depois mobília, agora criado; amanhã, provavelmente, ha de querer que eu lhe dê mulher, e, como não tenho outra, senão a senhora, não tenho remédio senão [texto truncado], apronte-se, sra. d. Joaquina, apronte-se! O fidalgo saiu furioso, protestando vingar-se, e foi direito ao príncipe regente queixar-se; mas Petra, interrogado pelo príncipe, tais coisas disse, acrescenta o dr. Macedo, e tão claramente manifestou a verdade, que as violências cessaram e o sistema das aposentadorias foi mais suavemente executado. Não pomos em dúvida a suavidade, mas o sistema odioso continuou até muito depois.

Segundo vimos em uma relação nominal de juízes de fora, vereadores e procuradores do antigo Senado da Câmara desde 1791 a 1829, o desembargador Petra deixou o cargo de juiz de fora em 1814, sendo substituído pelo dr. Luiz Joaquim Duque Estrada Furtado de Mendonça. O fato acima narrado pouca influência, parece, exerceu sobre a lei das aposentadorias; porque o sinistro e assustador P. R. só em 1818 foi derrogado, quando o príncipe regente, já então d. João VI, o extinguiu pelo decreto de 6 de fevereiro, do teor seguinte: “Querendo dar ao povo da Cidade do Rio de Janeiro uma demonstração da minha Real benevolência pela ocasião da minha coroação, nesta cidade, Hei por bem que todos os seus habitantes fiquem gozando, de ora em diante, do privilégio de aposentadoria passiva, e aqueles que tiverem servido ou servirem na Câmara e mais cargos da Governança da mesma Cidade, ficarão gozando dos privilégios concedidos pela Ordenação do Reino, livro 2°, t. 58, para os fidalgos e seus, caseiros e lavradores. A Mesa do Desembargo do Paço o tenha assim entendido”, etc. Só assim puderam respirar os proprietários desta cidade. Caso é para dizer – antes tarde do que nunca!

[24 de março de 1903.]