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Palimpsestos

Fundador de Navegos dá continuidade à publicação de fragmentos de seus diários íntimos, enfocando, preferencialmente, aspectos de sua produção como criador literário.

*Franklin Jorge

[email protected]

Essas coisas vos escrevemos, para que a nossa alegria seja completa. João, 1-4.

[…]

.O escritor é alguém que trabalha impulsionado por uma força cega, sem pensar em recompensas nem prêmios. Se trabalhamos pensando em recompensas, certamente nos frustraremos e, então, aí, tudo se perde.

.Escrever é um ato de fé.

.A ânsia de reconhecimento é subalterna e não deve ser considerada.

.Recompensas, somente as que o mérito proporciona.

.O suicídio é um ato de autoindulgência.

.A obra é análoga ao suicídio.

.Quem é feliz não cria nenhuma obra.

.O êxito não isenta ninguém do fracasso.

.O fracasso prevalece sobre toda e qualquer expectativa. É o arremate de todo empreendimento humano.

.Uma boa morte é tudo a que podemos honestamente aspirar.

.A adolescência é uma tremenda provação.

.A insatisfação faz parte da natureza humana; é a mãe das grandes obras.

.Há no êxito algo de subalterno.

.A mediocridade é naturalmente exitosa.

.O fracasso chega cedo ou tarde, mas chega.

.A obra é uma confissão do fracasso.

.O escritor é alguém que trabalha impulsionado por uma força cega.

.Devemos trabalhar sem descanso nem prêmios.

.Disse Thomas Mann que o gênio resulta de uma boa noite de sono.

.O sexo é um prazer caríssimo. Somente os jovens podem ter acesso a ele de graça. Todos os demais têm que pagar muito caro por ele.

.Como jornalista, sempre fui atraído pelas ideias que podem ter os homens cultos e inteligentes. Por isso quis tornar-me um entrevistador. E, no plano estritamente literário, um ensaísta. Sempre as ideias me atraem.

[..]

Lisa Mercedes apreciava a imobilidade que lhe permitia desfrutar o absorvente prazer de deleitar-se com o exercício do pensamento. Na cama, cercada de gatos, acreditava que não haveria maior volúpia que pensar de olhos no teto ou com um livro aberto sobre o peito do qual garimpamos alguma frase sublinhada, comentada, relida, transcriada.

Eu me lembro que ela admirava Clarice e algum jornalista chegou a chamá-la de “a Clarice” argentina. Este elogio ela o ouvia com inefável deleite, sem aborrecimento e sem sentir-se diminuída; ambas afinal se conheciam e mutuamente se admiravam, como alguma vez ocorre entre escritores.

Gostava mais dos artistas, seres anticonvencionais, talvez excêntricos, do que dos escritores que lhe pareciam solenes e mundanos.

Passava horas deitada, decifrando a misteriosa caligrafia do tempo impressa no teto do seu quarto, em Belgrano, 11 de September, Buenos Ayres. Sonhando de olhos abertos com o livro que escreveria, plasmando suas personagens, passeando pela natureza sobrenatural, refletindo sobre o milagre, terrível não por sua raridade – mas pela frequência com que costumam ocorrer, sem que o percebamos.

Pensar, dir-se-ia, a matéria-prima da criação. Pensar sobre esse negócio falido de existir, sobre a arte como uma forma de danação ou salvação; pensar na natureza das coisas e nas leituras pretéritas e futuras.

Os escritores encarecem o pensamento e se entregam à paixão de pensar.

Não é um prazer vulgar nem contempla a todos.

É a chave das percepções.

Talvez a autora de “O Sonho Violado” tivesse em mente as lições de Baudelaire, imerso na aura da imobilidade e concentração dos artistas, pensando os nossos livros.

Luz e música concernem ao gosto de pensar.

São momentos como esse que dominam o escritor, concedo. Em vez de amantes – dirá o autor de Justine, fazendo-nos participar da sua estranha intimidade intelectual; o mergulho na mente à procura de um livro. Um livro especial, como um rosto sem traços, imaginado por Clarice em sua embriaguês pensativa.

Nisso reside o consolo do trabalhado que o artista realiza, quer consignar Durrell em seu Quarteto que é a crônica difusa de Alexandria e de sua alma capturada em uma escritura requintada, persuadindo-nos não da magia ilusionista da literatura, mas do acordo que estabelecem os artistas; um acordo radiante com tudo o que nos feriu ou derrotou na vida cotidiana.

Ei-lo, o escrito:

“E desta forma, em vez de fugir ao nosso destino, como tentam as pessoas comuns, realizamos por inteiro – nós que pensamos, forçoso seria não acrescentar – nosso genuíno potencial – a imaginação (…)

“Deste modo, o sabor deste escrito possuirá algo de seus modelos vivos – seu alento, sua ele, suas vozes – entrelaçadas no tecido flexível da memória humana. Quero que vivam novamente, até que a dor se transforme em arte”.

Clarice tem a fantasia de quedar-se lendo, habituada a não considerar perigoso ler, isto é, pensar. De súbito, a uma frase lida, Clarice, com uma lágrima nos olhos, em êxtase de dor e de liberdade, diria: Mas é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!

.Céline pensava só em não morrer. Um dia vivo era um dia ganho.

E já que estava entre os homens, quis continuar.

Não gostava de gente morta. Gente que em vida fora como carneiros conformados.

Pelo pai, descendia de burgueses franceses e nascera Louis Ferdinand Destouches. A mãe era hábil bordadeira e, bordando – algo análogo ao ato da escritura -, ajudava a manter a casa. Seu trabalho era tão fino que não permitia que acendessem fogo em sua casa.  Comiam macarrão em todas as refeições, por duas razões. Por ser barato e por dispensar longos cozimentos e sobretudo por não ter cheiro marcante que impregnasse os lindos bordados maternos. Afinal a clientela era rica e cheia de exigências.

Há muito não lia Céline, um dos mestres do pessimismo, cuja influência se fez sentir sobre Henry Miller, escritor americano radicado em Paris que apreciou a crueza da sua linguagem e a levou mais adiante, para escândalo de leitores moralistas e hipócritas. De fato, Céline refere o homem, único, em vez da humanidade. Aí está o signo de sua escrita.

Era médico, sempre clinicando para os pobres e escrevendo em grande obscuridade os seus romances dissolventes. Durante a guerra, traiu a França, escrevendo a favor do i do cotidiano.

.Temperamento e não técnica delatam o artista criador.

.Dominado por um surto de pensamentos melancólicos, atravesso esses últimos dias sobrecarregado dessa sensação da nulidade futura.

Reverter ao pó. Ser pó. Nada mais…

.O escritor é alguém que se sente intrinsecamente culpado.

Por isso, escreve.

.Baudelaire, martirizado pela arte, rogai por nós!

.Os jovens raramente pensam na morte.

Agora, na meia idade, sempre temos a esperança de morrer a qualquer momento.

.O diabo protege os mal intencionados. Grahan Greene, Pontos de Fuga.

.À Beira do Corpo que releio em nova edição. A enganosa simplicidade dessa narrativa que diz muito mais do que parece querer dizer o autor em seus misteriosos desígnios.

Um dos grandes romances brasileiros em qualquer época.

Coloca-se, aqui, toda a astúcia da arte e a forte obsessão que mobiliza o autor – Walmir Ayala – e perpassa toda a sua obra, do romance ao poema, do teatro ao diário intimo: a questão do pecado como implemento necessário e intensivo à salvação do espírito nostálgico do Paraíso.

.Ah esse misterioso e indefinível sentimento de culpa que permeia a criação e faz de todo autentico criador um culpado que apenas a arte pode redimir.

.Conversa com Lelena [Maria Helena Cardoso] ao som de Maria Callas, enquanto saboreamos goles dum vinho branco gelado, sobre a estranha condição de alguns grandes artistas que não logram, além do reconhecimento público, nenhuma vantagem material e que por isso vivem num estado próximo da indigência.

Diz Lelena [que me acha física e intelectualmente parecidíssimo com o seu irmão Lúcio Cardoso] que o talento é muito oneroso e não assegura nenhum conforto, seja físico ou espiritual àquele que o possui menos como um dom do que um estigma [acrescento eu, lembrando-me de João Lins Caldas e de Newton Navarro]. Lelena enumera outros, entre os quais, inclui o seu irmão. Ninguém pode mensurar o sofrimento de Lúcio, balbucia, melancolicamente, a velha dama digna.

.Ainda sob a impressão do encontro com Lelena, em sua casa, na tarde de ontem.

Maior de setenta anos, conserva algo duma vivacidade juvenil que contamina tudo em volta.

[…]

Tem muitos amigos que a cumprimentam quando algumas vezes saímos a passear pela redondeza, especialmente pela Praça Nossa Senhora da Paz, a algumas quadras de sua casa – uma simpática e acolhedora residência repleta de memória e das lembranças do autor de Crônica da Casa Assassinada, Inácio e Maleita –. Uma ilha em meio ao gentio na qual não podem faltar a música, o vinho tinto e as velhas amizades de uma vida inteira. Walmir a adora e quis que nos conhecêssemos, tendo antes lhe oferecido um meu retrato e um exemplar de Poemas Diabólicos que tanto a impressionara – o retrato, por sua semelhança com o irmão querido, e os poemas que lhe pareceram inspirados pelas mesmas potestades que regeram a vida de Lúcio. Ambos, segundo suas palavras, avidamente dominados por um desejo de vida total… Dela, Walmir, recebe todo o carinho, fortalecido pelo sofrimento compartilhado há mais de 30 anos.

Grande vida, dedicada mais ao serviço dos amigos do que à usufruição, mais devotada aos outros do que a si mesma.

Admirável sua entrega a Lúcio, antes e depois do derrame que o prostrou e teve consequências terríveis sobre os seus últimos anos em que lutou contra a hemiplegia e a afasia, como Baudelaire, um dos seus mestres secretos.

A heroica batalha travada em silêncio, da qual colheu, no entanto, alguma vitória, como a de se tornar pintor e de reaprender a escrever, pelo menos, alguns parágrafos, ele, o grande escritor; um dos maiores que tivemos em qualquer época.

Interrogo-a discretamente sobre os anos loucos de Lúcio e os amigos e admiradores que compunham uma espécie de corte, como os riquíssimos irmãos Pentagna – Victo e Léa –, grandes proprietários rurais fluminenses; Octávio de Faria; Clarice Lispector que o amou por toda a vida; Maria Fernanda, a filha de Cecília Meireles por quem talvez Lucio tenha se apaixonado;Rosa Chacel e Pérez Rubio, Walmir etc. Intenso e autodestrutivo, reinou Lucio sobre o Rio de Janeiro, como um Príncipe das Letras, marcando uma época, nesse que seria uma versão carioca do Bloomsbury woolfiano.

[…]

Um escritor é seu estilo, sua cultura e reiterações.

Sem reiterações, sem personalidade. Sem personalidade, sem estilo.