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Pandemônio na pandemia

Navegos publica conto inédito do escritor, artista plástico e ativista cultural Iaperi Araújo inspirado e um tema que diz respeito a todo mundo, ilustrado por ele mesmo.

*Iaperi Araújo

Naquela vila do Seridó, antigamente as pessoas tinham o hábito de bem cedinho varrerem as calçadas e uma parte da rua que lhes era domínio. Aproveitavam e varriam o lixo, folhas secas e excremento de animais, para a frente das casas vizinhas. Uma pequena maldade para se vingar do falatório da vizinhança, da falta de solidariedade numa precisão e do olho grande no marido. Quando a Vila passou a cidade, arrumaram uns varredores que faziam aquele serviço com vassourões e uma carroça de mão onde colocavam os entulhos para levarem até um monturo nos fundos da igreja onde era despejado a céu aberto.  Mariinha era a única que seguia o ritual. Não permitia que os varredores fizessem o serviço que ela assumira como questão pessoal. Tinha uma pinimba com as vizinhas dos dois lados e continuava a varrer o lixo para um lado, casa de Marical e para outro, casa de Hosana.

Quando falaram que uma tal pandemia estava chegando na cidade, ficou preocupada. Que danado seria aquilo? Uma doença? Uma praga? Foi na igreja perguntar ao padre Ambrosio. Ele nem ligou. Aposto que também não sabia, mas recomendou cuidados. Lavar bem as mãos de vez em quando, usar um pano na cara quando fosse falar com alguém e ficar dentro de casa. Sequer ir a missa e as reuniões do Apostolado nas noites de terça feira. Aí, danou-se. Como se preparar praquela guerra se nem na igreja podia ir. Ali era um lugar santo. Como a tal pandemia que devia ser coisa do cão, o tinhoso, o bicho sem nome, o asmodeus, coisa ruim, fedorento, bufarinheiro poderia entrar no templo de Deus? Só podia ser coisa daqueles tempos.  Era isso mesmo, mocinhas indo prá igreja quase nuas, com um shortinho que só faltava amostrar as polpas da bunda, sem véu ou manta cobrindo a cabeça?  Só podia ser.  O pé de péia tava em todo canto da cidadezinha. Nos bares com moça fumando e bebendo, quase nuas, nos bailes de agarração com umas músicas que só falava nome feio. Parecia tudo festa em casa de rapariga de tanta esfregação que via. Via não, que nem olhava. Escutava os mexericos nas reuniões do Apostolado. O padre? Nem ligava. Era como se fosse uma coisa natural. Claro que nas festas da igreja ele não permitia. As músicas tinham que ser das antigas. Nada de contratar músico. Botava no serviço de som, discos de Nelson Gonçalves, Anisio Silva, Dalva de Oliveira e todos os antigos que cantavam com a voz de cantor.  Por isso que as festas do padroeiro só davam velhos. Mas era o que bastava. Velho é que tinha dinheiro prá sustentar as obras da igreja. Os novinhos que gostavam dessas músicas de safadeza não iam porque não eram tocadas nessas festas.

Tempos modernos comentava sua única amiga.

Dona Flauzina era ainda muito mais antiga do que ela.

– Sou das antigas sim, dizia quando ia fazer as compras na feira, vestida de saia até os pés, cabeção fechado no pescoço e mangas compridas.

– E mais, só uso preto, de luto do meu finado marido que foi antes de mim faz 37 anos. Não afroxo meu luto. Sou dessas não que com 7 dias de viuvez já tá vestindo encarnado e de olho em outro macho. Me respeitem, ouviu?

Para se prevenir, da pandemia que ela não sabia o que era, Mariinha passou a usar um pano-de-chão molhado com álcool nas frestas da porta e das janelas.

– Aqui ela não entra.

Ela era a pandemia de que falavam tanto.

– Eu sei quem é. Escuto rádio. Não sou como umas e outras que não escutam rádio mas vivem de olho na televisão da praça instalada pela Prefeitura, vendo novela de safadeza. Ah, não. Sou das antigas, mas sou atualizada. Sei de tudo que se passa aqui e até em Caicó. Pandemia é uma coisa inventada no estrangeiro prá diminuir o povo do mundo. Já é difícil imaginar a terra como uma bola e o povo que vive lá em baixo não cair. Por isso que lá em baixo da terra não tem gente, senão caia todo mundo no céu. Um dia, vai faltar chão e o povo vai descendo, vai descendo e acaba indo morar lá embaixo e não sei como vão viver de ponta-cabeça.

Dona Flauzina que ouvia de olhos arregalados tanta ciência da comadre parecia que nem respirava.

– Deus me livre de me mandarem prá lá, comadre Mariinha. Eu sofro de labirintite, se ficar de cabeça prá baixo o sangue desce todo prá cabeça e acabo tendo um derrame. Me tirem dessa mudança.

– Pois é, comadre no estrangeiro tem muito gente com essa labirintite da senhora e esse povo todo se juntou prá pedir a dona Pandemia prá inventar um germe que matasse muita gente prá caber aqui por cima mesmo.

Mariinha respirou fundo e olhou pro céu.

– Só Deus na causa. Não deixo minha casinha que é minha por nenhum Palácio em baixo da bola da terra e se for por mim essa tal Pandemia pode chegar na minha casa.

A palestra amornou por ali até que não sei qual das duas sugeriu falarem no assunto na reunião do Apostolado, mesmo com a proibição do padre de se reunirem.

– Mariinha, mulher, você é que deve puxar conversa na reunião. Você muito estudada e tem que conversar com todo mundo prá gente se unir contra esse desmantelo do cão.

A comadre ouvindo o nome do fute se benzeu e acertaram conversar com as mulheres do Apostolado.

Na terça, Mariinha mandou um menino expedito à casa das companheiras da agremiação religiosa, mandando dizer que por conta da proibição do padre, era queria uma reunião no quintal de sua casa.  Claro que não transmitiu tanta informação ao menino que saiu de casa em casa levando o recado. Era muita coisa prá dizer e acabaria metendo os pés pelas mãos.

– Basta dizer que a reunião do apostolado será as 6 da noite aqui em casa e que não faltem

Na hora aprazada, as mulheres foram chegando. Vinham com um pano na cabeça que variava de um véu preto a uma toalha de banho. No pescoço a fita vermelha com a medalha do Sagrado Coração de Jesus. Todas de vestido escuro até quase o mocotó. Primeiro rezaram o Oficio da Conceição e depois do Amém Mariinha tomou da palavra.

– Tá chegando nesses dias, aqui uma tal de Pandemia que não sei o que vem fazer. Por certo ispicular qa vida da gente. Parece que vem com um tal de coronga que no meu pensar é coisa do diabo. O padre me disse que é prá gente usar um pano na cara, ficando só com os olhos de fora prá num soltar cutícula e tem que passar alquigel nas mãos.

Ninguém entendeu nada. O pior é que dois anos antes, a cidade que não tinha luz elétrica recebeu um motorzinho gerador de luz que só aguentava um bico em cada casa e mais os quatro postes da praça da igreja. O motor funcionava somente até 8 da noite, mas piscava duas vezes antes de apagar. Era o sinal para o povo ir prás suas casas. Nessa hora, o motorzinho já muito usado explodiu numa festa de luzes e tudo virou escuridão.