*Franklin Jorge
Ascendino Leite dispensava-me enquanto viveu um afeto paternal. Nossa amizade, iniciada ao tempo em que vivi no Rio de Janeiro, nos anos de 1970, durou por mais de trinta anos. Chegou a citar-me algumas vezes em volumes de seu famosíssimo ‘’Jornal Literário’, no gênero, um dos grandes monumentos literários da língua portuguesa.
Uma ou duas vezes por semana, ia encontrá-lo depois do meio-dia no Cartório que recebera em concessão do governador Carlos Lacerda, para que não se preocupasse com a sobrevivência e pudesse dedicar o resto de sua vida a escrever os livros que o inscrevem no Panteão literário do século, na condição de estilista e mestre; um escritor, enfim, para escritores.
Nessas deambulações que constituíam para mim um prazer inominável, como algo que se faz esperar com essa espécie de ansiedade permeada de inquietação e prazer, dizia-me que ao homem de poder, dotado de visão e discernimento, agrada cercar-se de pensadores e homens inteligentes providos de cultura, se possível, de uma cultura considerável, pois seria através deles que suas ações se fariam conhecidas e respeitadas pela posteridade. Kubitschek, dizia-me, teve o seu Autran Dourado, a quem deu um Cartório. Chateaubriand, Joel Silveira, de quem leu um artigo publicado em um jornal provinciano e aquilatou o seu talento elevado a grandes alturas. Contratou-o imediatamente, segundo dizem, afirmando: Quero ter essa cobra perto de mim… Lacerda, no fim da vida, se aproximou de Villaça, como sabe, e o fez organizar o seu O cão negro, um livro que há de perdurar. Villaça, que o admirava, traçou-lhe o perfil pelo qual a posteridade o conhecerá e verá de corpo inteiro em sua exorbitância de vida…
Comíamos, nesses dias memoráveis, em tradicionais restaurantes portugueses e árabes do Centro do Rio, para os quais nos dirigíamos a pé, conversando descuidada e animadamente sobre os mais diversos assuntos que incluíam, além da literatura e da vida literária, a politica e a nossa terra Nordestina que nos destinara os fados.
Gostava de orientar-me e aconselhar-me acerca de coisas sobre as quais eu jamais pensara. Frequentemente dizia-me para jamais me inimistar com pessoas que soubessem escrever e, menos ainda se, além de escrever tivessem cultura reconhecida, pois isto só podia redundar em aborrecimentos e prejuízos inauditos. Insistentemente, recomendava: Não polemize com quem domina a palavra, tem cultura e sabe escrever, repetia nessas caminhadas que me enchiam de contentamento, ao ouvi-lo sobre os grandes escritores e políticos que conhecera, como o próprio Lacerda, de quem fora Diretor do Departamento de Imprensa que lhe traria tantos aborrecimentos e prejuízos profissionais, como o banimento da prática jornalística que perdurou mesmo depois da morte do governador, já cassado pelos Militares, muitos anos depois.
Os comunistas o odiavam e quiseram bani-lo do mundo das ideias, usando para isto os expedientes cabulosos mais vis de que são mestres. Mas Ascendino não se deu por vencido e continuou a fazer sua obra e ampliar seu círculo de admiradores. Tinha admirações e ojerizas das quais eu, ainda no começo da vida, partilhava.
Como testemunha ocular da História, mantinha frescas na memória lembranças ainda não registradas nos livros. Era, pois, como uma daquelas bibliotecas vivas de algumas tribos africanas que reverenciam os velhos pelo que amealharam do Tempo.
