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Perceber as trevas da contemporaneidade

“O poeta – o contemporâneo – deve manter o olhar fixo no seu tempo. Mas o que vê quem vê o seu tempo, o sorriso louco do seu século? Neste ponto gostaria de propor uma segunda definição de contemporaneidade: contemporâneo é aquele que tem o olhar fixo no seu tempo, para perceber não as luzes, mas as trevas.”

*Giorgio Agamben

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O poeta – o contemporâneo – deve manter o olhar fixo no seu tempo. Mas o que vê quem vê o seu tempo, o sorriso louco do seu século? Neste ponto gostaria de propor uma segunda definição de contemporaneidade: contemporâneo é aquele que tem o olhar fixo no seu tempo, para perceber não as luzes, mas as trevas. Todos os tempos são, para quem faz a contemporaneidade, sombrios. Contemporâneo é justamente aquele que sabe ver essa escuridão, que sabe escrever pintando a caneta na escuridão do presente. Mas o que significa “ver a escuridão”, “perceber a escuridão”? Uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando nos encontramos num ambiente privado de luz ou quando fechamos os olhos? Qual é a escuridão que vemos então? Os neurofisiologistas dizem-nos que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, chamadas células off, que se tornam ativas e produzem aquele tipo particular de visão a que chamamos escuridão. A escuridão não é, portanto, um conceito proprietário, a simples ausência de luz, algo como a não visão, mas o resultado da atividade de células alheias, um produto da nossa retina. Isto significa, se voltarmos agora à nossa tese sobre a escuridão da contemporaneidade, que perceber esta escuridão não é uma forma de inércia ou passividade, mas antes implica uma atividade e uma capacidade particular, que, no nosso caso, equivale a neutralizar as luzes que vêm do tempo para revelar a sua escuridão, a sua escuridão especial, que não é, em caso algum, separável daquelas luzes. Só pode ser chamado de contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue vislumbrar nelas a parte da sombra, a sua escuridão íntima. Com isso, porém, ainda não temos a resposta para nossa pergunta. Por que deveríamos estar interessados ​​em poder perceber a escuridão que vem dessa época? Não será a escuridão talvez uma experiência anónima e por definição impenetrável, algo que não se dirige a nós e não pode, portanto, preocupar-nos? Pelo contrário, o contemporâneo é aquele que percebe a escuridão do seu tempo como algo que lhe diz respeito e que não deixa de o desafiar, algo que, mais do que toda a luz, lhe é dirigido diretamente. Contemporâneo é aquele que recebe no rosto o raio de escuridão que vem de sua época.

Giorgio Agamben
«O que é o contemporâneo?»