*Bruno Cena Macedo
O conto Perdoando Deus (está presente no livro Felicidade Clandestina, lançado em 1971) da majestosa escritora ucraniana-brasileira Clarice Lispector, é sem dúvida uma das mais incríveis epifanias presentes em toda a sua obra. Onde o percurso provocativo ora misterioso e enigmático se revela em meio a banalidade de um simples passeio na orla de Copacabana.
Escrito sob um viés reflexivo e profundo, o texto possui um enfoque voltado à presunção que podemos analisar como uma relação entre o fiel e a divindade.
Clarice convida o leitor/leitora para uma espécie de submersão onde passa a estabelecer uma onda de questionamentos pós leitura, quanto a fé e a forma com que está se instaura no homem, se por pura crença obtida através de um contato natural e livre com a divindade (que é a forma de contato que a personagem usa) ou se por intermédio primordial das doutrinas religiosas racionalizantes.
Pelo fato de ser narrado em primeira pessoa e de a personagem vivenciar alguns momentos conflituosos e de puro barulho psicológico sendo depois estabelecido um diálogo silencioso, é ao leitor/leitora permitido “acesso direto” aos pensamentos da narradora/personagem em uma espécie de imersão contactual das vivencias e dos questionamentos ali expostos.
No início é possível deduzir que por mais que a personagem tenha seu desejo de ser mãe de Deus expressado abertamente, percebe-se que tenha sido levada pela distração quanto aos meios externos que a circunda.
Quando lemos o trecho “pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas” entendemos perfeitamente que não se trata apenas de uma anáfora (repetição), mas de uma dedução lógica que pode ser percebida também por quem está lendo, pois quem narra estava sucumbida em pura intuição, descobrindo posteriormente que a percepção é que estava o tempo todo tentando se fazer presente.
O animal morto que causa repulsa, medo e nojo (caracterizado no conto por um rato ruivo) provocando uma reação de revolta e ira na personagem é um analogismo que funciona como ponte entre o objeto real – o rato – e a condição imaginativa da mulher como provável ocupante do lugar do rato. No trecho “a grosseria de Deus feria-me e insultava-me” nos aproxima de um entendimento mais preciso do onde se quer chegar o conto, podemos entender como uma interpretação de que a personagem entende o fato de ter pisado o rato morto como uma forma que Deus usou para a aproximar da realidade que a coloca como ser vulnerável e sujeito às intempéries naturais como a morte e o sofrimento.
Perdoando Deus nada mais é do que um efeito reverso onde se conclui um perdoando a personagem. Nota-se ainda que a presença de Deus decorre da livre percepção e não da imposição doutrinária. Se livrar da posição superior em relação ao rato é se livrar da posição superior (errônea e utópica) em relação a Deus.