*Bruno Cena
O que é a poesia se não um receptáculo de nós mesmos? Um insano projeto de nos autoafirmar como benevolentes diante da vida que é parte da poesia, veja só. A vida como parte da poesia e não o contrário.
O que é o texto poético se não um memorial de um alguém? Ainda que, de um alguém que não escreve, que não sente absolutamente nada do que escreve, mas escrever é justamente representar, os anseios do outro, as dores do outro, enfim, o outro.
Quem é, portanto, o poeta? Como ele surgiu, como evoluiu? Há evolução? O poeta é no máximo um transportador, sim, um ser que “carrega’’, um porta-bandeira.
Não sei ao certo se a poesia é um estado de espírito, como dizem por aí. E se for apenas uma técnica? Apenas? Como se fosse simples exercê-la, usá-la, manipulá-la. É claro que é uma técnica, como qualquer outra, mas com um certo tom de primitivismo. Dirão que estou errado, não darei importância.
A poesia precisa ser “construída”, meus caros, necessariamente construída, como uma casa, uma rua, um açude, uma calçada. Poesia é construção. E mais do que isto.
Poesia é um produto. O poema é um objeto, vendável. A gente paga por este produto e o toma para si, exerce poder sobre o objeto comprado, mas este costuma escapulir dos nossos domínios.
O poeta austríaco Rainer Maria Rilke escreveu: “os versos não são como se acredita, sentimentos apenas (estes nós os temos em demasia) são experiências profundas. ” Que experiências profundas são essas? Como se materializam essas experiências? Quem executa esse processo? Como se dá esse processo? Essa profundidade não é tão somente uma construção? Uma materialização de algo que se torna um objeto, um produto derivado de uma matéria?
Bem, temos agora mais um escândalo. A poesia também é matéria. Profunda. Obtida através das experiências. E experimentações? E experimentações! Como bem definiu Oswald de Andrade, “é a descoberta / Das coisas que nunca vi”. É algo grosseiramente novo, empírico.
O papel é o chão da poesia, assim como a voz sempre foi o tapete que coube a si, desde os primórdios. É também a embalagem que sustenta o produto, o receptáculo das experiências.
A poesia é também um processo doloroso, assim como um parto (de preferência cesariana), ao menos nisto os homens podem parir. Parir num submundo, clandestino, onde impera toda sorte de dor e beleza.
Pego-me pensando se realmente Agostinho de Hipona não estava certo ao dizer que a poesia é “o vinho do Diabo” que fascina, encanta, prende e convence, para depois sufocar, amarrar-nos aos seus pés, nos lançar em abismos, para depois resgatar-nos.
Não há salvação. O produto poético exerce uma espécie de domínio. Há uma necessidade de dominar-se.