*Francisco Alexsandro Soares Alves
Como letra de música se tornou poesia? De fato, ela não é, mas no Brasil e para o Prêmio Nobel concedido a Bob Dylan, parece que sim. No caso do cantor estadunidense, houve a desculpa dele ser também escritor de poemas. Na década de 60, no Brasil, um livro de antologia poética da Geração-60 causou polêmica ao não incluir letristas em suas páginas.
Mas o que quero discutir um pouco nesse artigo não é se letra de música é ou não é poesia, porque para mim não é. A questão é: como o Brasil conseguiu levar tão a sério letra de música ao ponto de torná-la poesia, poema, mais especificamente, e não o sentimento. Como e por que se deu essa elevação no status da letra de música? Penso em alguns pontos.
Sabemos que no Brasil, o nível geral de leitura é muito baixo. Antes havia a desculpa dos preços dos livros. Mas com os pdfs e a internet, essa explicação cai por terra. O Brasil consome muito pouco literatura. E cada vez mais o país perde leitores. De 2015 a 2019, o país perdeu 4,6 milhões de leitores, no mesmo período, 93 milhões de brasileiros, 48% da população, não leram nenhum livro, nem mesmo em partes. Com a pandemia, houve um aumento nos leitores, porém a maioria dos livros eram livros de autoajuda, ou seja, baixa literatura ou a Bíblia.
Esse fenômeno não ocorre apenas entre as classes menos favorecidas, entre as classes mais abastadas o consumo de livros também diminuiu, por isso que explicar pelo viés de preço do livro é, no fundo, uma desculpa tola e esfarrapada. Aqui, lançarei um dado, digamos, periférico. Estive vendo vídeos de casas de luxo e mansões. Apenas em residências construídas em décadas passadas, há biblioteca. Nas casas modernas, esse espaço foi substituído pela danceteria com vista para a piscina. A leitura e seu hábito, assim como seu lugar, a biblioteca, fazem parte de uma mentalidade aristocrática que se perdeu. É uma mentalidade e uma ocupação, que a pobreza dos novos-ricos não abarca. No máximo, uma estante com livros de fotografias, que mais serve como decoração do que como lugar de atividade intelectual. O brasileiro sempre foi pobre intelectualmente. Aqui se tem a seguinte noção: quando eu ficar rico, eu terei cultura; aí quando se enriquece, não há espaço e nem tempo para a cultura, porque se gasta com trivialidades, com o que se tornou hábito – o dinheiro não modifica hábitos, apenas os fortifica. A vida intelectual dos astros brasileiros, das Anitta aos Neymar, passando pelos Gustavo Lima e cia. sertaneja, com todo o dinheiro que possuem, é comparável à vida do catador de lixo. E assim é a vida intelectual da maior parte do brasileiro.
O Brasil substituiu a leitura pela audição. Esse é outro ponto, que talvez seja um fenômeno mundial, porque a sociedade moderna é avessa ao sossego e à lentidão, atitudes essenciais para uma leitura, porque exige-se tempo. Essa substituição empobreceu o homem e a mulher. Porque música não é superior à literatura. Beethoven não é superior a Goethe; Villa-Lobos não é superior a Camões. Se com a música erudita é assim, imagine, então, com a música popular? Uma música produzida para vender, para consumo rápido, ela mesma durando dois ou três minutos, pobre em acordes, carente de melodias bem trabalhadas e insistentemente rítmica? Renato Russo, Cazuza, Raul Seixas, Paulo Coelho e similares, não são poetas. São apenas letristas, e o fato de Paulo Coelho ser um imortal da ABL não abona o escritor, apenas desabona a academia. São letristas: a intenção deles, e de outros semelhantes, é mexer com o ouvido ou com o corpo, mas não com o cérebro. Não se pensa em três minutos de uma música de Legião Urbana. Não se pensa em sucessivas músicas de três minutos de bandas de rock e similares, simplesmente se agita o corpo, grita e chora. Exatamente o comportamento diferente da leitura de um poeta. Até mesmo quando ouvimos uma palestra sobre determinado tema, estamos quietos e anotando dados para pensarmos em nossas casas. Em um show de música popular apenas se passa o tempo ouvindo boa música ou péssima música.
Para apreciar música não é necessário um cérebro pensante, pode até existir no ato da audição, mas não é uma relação “sine qua non”. Ao contrário da poesia, onde a existência de um cérebro que pense e se aprofunde é essencial. E então chegamos ao motivo da elevação da letra de música ao status de poesia. A letra de música é simples e pode dar a impressão de intelectualidade e profundidade. Até mesmo de refinamento. Isso falou ao brasileiro médio. Aquele indivíduo avesso à leitura desde sempre, encontrou um subterfúgio para esconder sua mediocridade. Elevou a música a um projeto de vida, a uma atividade de refinamento intelectual. Mas Chico Buarque não substitui Marx. Isso já ocorrera antes no terreno da música erudita: com a música absoluta, elevada a um status filosófico, a partir de Beethoven, ou na racionalidade processual das composições dodecafônicas e seriais no século XX.
Um fato interessante é o que ocorre com o rock nacional. Nos anos 80, explodiram bandas de rock no Brasil: Legião Urbana, Camisa de Vênus, Titãs, RPM, Ultraje a Rigor e tantas outras, quase todas esquecidas. Essas bandas, em suas letras, iam do protesto ao sexo, do nada a dizer ao encontro em uma praça, das denúncias de corrupção ao estupro. Em um mesmo disco. Sucessivamente. Seus líderes e integrantes eram vistos como seres intelectuais, pensantes, consumir suas músicas era se diferenciar, por exemplo, de quem ouvia músicas sertanejas ou românticas. Hoje, esses indivíduos apoiam Bolsonaro e seus fãs, alguns, bem poucos, reclamam. Já outros, a maioria, é capaz de vaiar Nando Reis quando este puxa um “Fora, Bozo!”. O que houve? A indústria cultural vive através da imagem, não do conteúdo. As músicas dessas bandas, por passarem um conteúdo anárquico, acabaram dando a impressão de que seus roqueiros eram “revolucionários”, de esquerda; na verdade, conservadores de direita. A indústria aproveitou o momento de redemocratização para lançar seus produtos convenientes. Apenas isso. Não era nada “sério” ou “profundo”, era apenas “marketing”. Poesia não vive disso.
Com Nando Reis a coisa foi mais emblemática. Nando pensava, ou pensa ainda, que suas composições faziam pensar. Na verdade, formaram e alimentaram um público avesso a tudo o que suas letras de música dizem. Porque, no fundo, é apenas diversão mesmo. É “viagem”, como se costuma dizer no meio.
E é de “viagem” que o indivíduo moderno, líquido, diluído em mil papéis sociais precisa. Não é de Camões ou de Cervantes. Imagine chegar em casa esgotado, tendo deixado a alma na fábrica, moribundo em um ônibus lotado e ainda ter espírito para a Alta Cultura? São poucos os que ainda conseguem. A indústria acabou com uma parte do ser. E o que pôs no lugar? A necessidade do gosto por obviedades passageiras.
Essa necessidade gerou outra. A de transformar pé de galinha em filé mignon: transformar letra de música em poesia. Uma geração ressentida porque não se incluiu e não se deve incluir, em livro de poetas, letristas de músicas. Isso dura até hoje.