*Franklin Jorge – Um pobre homem do Ceará-Mirim
Hesitante entre lembrar e esquecer, a velha senhora alterna silêncios e pequenos goles de espesso e saboroso suco de caju, servido por jovem e atencioso garçom à beira da piscina. O vento Nordeste refresca a tarde com o seu hálito. Ah, você me faz puxar pela memória e lembrar-me de coisas que talvez eu gostasse de esquecer, suspira discretamente, girando a taça entre os dedos artríticos. Observo que conserva no anular esquerdo as duas alianças que delatam seu estado civil.
Capela… Como sabe, era um antigo engenho que faz parte da história da família. Passávamos a frequentá-lo, seu avô e eu, quando Edith se mudou para lá, logo após o seu casamento com Agenor. Pertencia à herança de Dona Maroquinhas, que criou os filhos lá. Agenor, Alice, Alcides, Ademar e Almerinda. Já a conheci viúva, no Ceará-Mirim, onde ela costuma ir com os filhos passar temporadas que coincidiam com a festa da padroeira. Nesse tempo ela morava numa casa que possuía à Rua São José, onde depois Edith e Agenor passaram a residir. Nessa casa nasceu sua madrinha de apresentação, Isolda. Você já conheceu Dona Maroquinhas morando na Rua da Aurora, atualmente Heráclio Vilar, onde Alice, que era diabética, morreu. Não me recordo a data dessa ocorrência, só que você ainda era muito criança ainda e me acompanhou ao velório que atraiu, além da família, muitos amigos, pessoas ligadas por laços de sangue ou de amizade e simples curiosos, pois naquele tempo as mortes eram acontecimentos sociais muito importantes e colocavam em destaque, pelo menos até a missa de sétimo dia, a família enlutada.
Coincidiu que viéramos do Assu em visita às nossas origens quando Alice, depois de muito sofrimento, morreu. A casa encheu-se gente. No centro da sala da qual as cadeiras e sofás foram retirados ou encostados às paredes, sobre a eça forrada de veludo preto, o ataúde de Alice cercado de círios que ardiam, misturando-se o enjoado cheiro das velas com o perfume das coroas enviadas pelos amigos da família, como era o costume. Parecia que todo o Ceará-Mirim e os moradores de Capela estavam ali. Fonseca reencontrava amigos com os quais conversava, enquanto as mulheres consolavam Dona Maroquinhas, muito digna em sua dor, cercada dos filhos e da única nora, sua tia Edith.foi o primeiro velório a que você compareceu por estar em nossa companhia. Foi aí que, num momento de distração de sua babá, sem que notássemos, você se pôs diligentemente a apagar as velas, até que alguém teve a atenção despertada para o fato e todos corremos, muito constrangidos com o inusitado, para tirá-lo dali. Ficamos muito aflitos, mas algumas pessoas não deixaram de rir de sua astúcia… Você era um menino tímido, embora sociável, e os tímidos às vezes tem reações inesperadas. Foi assim que sua tia e eu entendemos o que ocorrera naquele velório de que me lembro só por este fato.
A casa do engenho Capela tinha apenas três quartos e alpendres muito amplos. Durante muitos anos, quando você não sonhava nascer, a frequentamos, seu avô e eu. Quase sempre íamos bem cedo, seguindo pela Rua São João que, começando na esquina da igreja matriz ia terminar onde já começava a zona rural do Ceará-Mirim. Naquele tempo as pessoas abastadas tinham o prazer de receber os amigos em suas casas de campo. Era uma diversão muito apreciada e frequente. O contato com a natureza exercia um grande encanto sobre as pessoas. Além disso, possuir terras era um sinal de distinção. As famílias patriarcais, embora tendo casas nas cidades, por necessidade ou ostentação, moravam no campo.
Quando Fonseca sentiu-se doente quis ir morrer em suas terras, no Estevão, pois, segundo dizia, é da terra que herdamos e, no fim de tudo, a ela voltamos quer queiramos ou não. Levava-se, na verdade, uma vida frugal e sem artificialismos, o consumo se restringindo às coisas necessárias à uma sobrevivência digna. A ostentação era geralmente mal vista, embora a qualidade fosse procurada por todos os que tinham um gosto mais apurado e alguma cultura humanística e literária. Havia as “roupas de festa”, que chegavam a ser luxuosas e muito trabalhadas por modistas, costureiras, rendeiras e bordadeiras peritas nessas artes suntuárias. Quando viajávamos, era de praxe o uso de guarda-pós, um casaco comprido muito elegante, de gabardine, que protegia a roupa que vestíamos do contato com coisas que pudessem sujá-la ou estragá-la. Essas coisas eram feitas para durar uma vida, não é como agora, quando mesmo o que é caro não tem qualidade…
Frequentei a Capela com o seu avô durante o tempo em que Edith e Agenor moraram lá, em meio a viçosas fruteiras, como mangueiras, sapotizeiros, goiabeiras, caramboleiras, cajueiros, dendenzeiros, coqueiros, abacateiros, marmeleiros, pitombeiras, jabuticabeiras, laranjeiras, jenipapeiros, limoeiros,umbuzeiros, além de pés de serigoelas, araçás, fruta-pães e uma grande área plantada de bananeiras das mais variadas espécies. Havia ainda plantios de raízes comestíveis, como inhames, macaxeiras, mandiocas e batatas.
O cuscuz substituía o pão, naquela época, raro; no entanto havia uma grande variada de quitandas feitas de polvilho e bolos de milho, de batatas, de carimã. As papas e coalhadas faziam parte da dieta das famílias, assim como o mel de furo ou de engenho com um pouco de farinha de mandioca ou sobre inhames. Saíamos da nossa casa, na Praça do Mercado, aí por volta das seis horas ou um pouco antes, a pé, e às vezes a cavalo, num passo regular, pois seu avô os criava cavalos de raça, em sua Fazenda Limão, em Baixa Verde, considerada uma das melhores de toda aquela região do Mato Grande. Chegávamos meia hora depois, para o café da manhã farto e variado, segundo o costume patriarcal dominante na época. Minhas irmãs Maria e Geralda moravam comigo desde que me casei com o seu avô e nos acompanhavam nesses passatempos. E, quando a sua mãe nasceu, a babá juntou-se à nossa família.
Todos nos sentíamos felizes e gratificados com esses passeios ansiosamente desejados. Às vezes Jorge preferia ir a Capela em vez de visitar suas próprias terras que ficavam mais distantes, na região do Mato Grande, depois de Taipú, onde vivi os primeiros anos de minha vida, até a morte de minha mãe e a mudança para o Ceará-Mirim, que sempre considerei a minha verdadeira terra natal, pois foi lá e em Natal que transcorreram minha infância e mocidade. Depois do meu segundo casamento fui morar no Assu, primeiro, na cidade, numa bonita casa que Fonseca tinha na Praça do Rosário, e depois, quando ele construiu a casa do Estevão, onde você se criou até os doze anos, mudamo-nos o campo. Porém, nunca pude esquecer o engenho Capela, quando a vida parecia-me uma sucessão de dias felizes, ao lado dos nossos queridos.
Ao chegar a Capela, já casada, Edith plantou um jardinzinho encantador que a principio constituía o seu principal lazer. Cuidava dele com desvelo, enriquecendo-o com novos especimens que ganhava dos amigos em visita aquele paraíso nos aceiros da cidade que se destacava das outras por suas riquezas, como a cana de açúcar e a produção agrícola que fazia de sua feira semanal, no entorno do Mercado, um grande acontecimento. Nesse dia, mal podíamos transitar pelas ruas, por ser grande a multidão flutuante que vinha dos sítios exibir sua fartura ou de municípios vizinhos. Chegava a suplantar Natal em riquezas. Sentíamo-nos orgulhosos de viver nessa terra que parecia em tudo abençoada por Deus. Terras pródigas de seiva, muitas matas ainda selvagens, água, muita água, manando de olheiros que alimentavam rios e lagoas. Esse excesso tornava às vezes a terra insalubre e sujeita a endemias, como a malária e as sezões. Capela era assim, em microcosmo, o próprio Ceará-Mirim, terra onde os nossos ancestrais se radicaram e tem vivido, geração após geração. Quando voltou a morar na cidade, Edith conservou esse gosto pelas plantas ornamentais que tem o dom de embelezar e tornar a vida humana mais agradável, perfumada e cheia de cores.
Algumas vezes organizávamos piqueniques maravilhosos às margens do rio Azul, de águas puríssimas, que banhava a Capela, para os quais convidávamos nossos melhores amigos que se juntavam ao grupo familiar. Nessas ocasiões, não faltavam Jorge Moura e a mulher, a bela Mariana; João Rodrigues e Benigna; Chicó – irmão de Virgílio Luiz, ainda solteiro – e Nanuh, geralmente convidados por Jorge Palhano do Nascimento, de quem você herdou o nome. Eram momentos de grande descontração e alegria íntima. Cantávamos, recitávamos, líamos. Promoviam torneios de parlendas e às vezes disputávamos para saber quem conhecia mais provérbios e aforismas. Os provérbios eram muito populares e ajudavam na educação doméstica. Fazíamos um circulo e cada um que dissesse um provérbio que corroborasse ou fosse a antítese do que abria cada rodada.
Meu repertório era quase inesgotável, pois, alem de ler muito me agradava essa forma pedagógica e instrutiva de transmissão da sabedoria popular. Sempre os usei para reforçar ou contestar argumentos… Foram compostos para serem decorados e lembrados no dia a dia à guisa de comentário. Com papas e bolos, enganam-se os tolos… Para barriga cheia o mel amarga… Bem se lambe o gato depois de farto… Pão fatiado não farta rapaz esfaimado… Azeitona com pão alvo é comida de fidalgo… Beleza e formosura não dão pão nem fartura… Enquanto há figos, há amigos… Água corrente não mata a gente… Azeite, vinho e amigo, o mais antigo… Do pão a boca, perde-se a sopa… Uvas, pão e queijo sabem a beijo… A falta de pão, boas são as tortas… Vinho, mulheres e tabaco, fazem o homem fraco… Bem jejua quem mal come, querendo dizer, come pouco ou frugalmente… Antes coelho magro no mato do que gordo no prato, significando que o que pode parecer vantajoso resulta afinal em prejuízo ou decepção… Não trocar o certo pelo duvidoso… Bebeu, jogou, furtou: beberá, jogará, furtará… Dos cheiros o pão, dos sabores o sal… Como vê, ainda tenho uma boa memória, até porque o que se aprende em jovem não esquecemos quando velhos…
Deus me concedeu a graça de ter uma boa memória. Não admira que os gregos considerassem a memória a rainha das artes. E geralmente em nossa família as pessoas envelhecem sem caducar e sem perder o senso das coisas, o que é verdadeiramente uma benção divina. Os piqueniques então eram frequentes e iam além de Capela. O engenho Jacoca, de Maneco França, foi palco de grandes piqueniques no meu tempo de moça. Havia lá um olheiro que desaguava no rio Mudo. Ali tomávamos banho e fazíamos grandes e inesquecíveis piqueniques que duravam o dia inteiro.
No Ceará-Mirim, só íamos para as festas juntos e, juntos, nos divertíamos, Nanuh, Chicó, seu avô e eu. E, quando, por algum motivo, eles não podiam comparecer a essas festas que eram sempre muito animadas, as pessoas logo acorriam para saber se estavam doentes, pois a ausência desses queridos amigos não lhes parecia normal. Numa festa de São João em que fomos todos fantasiados de caipiras, Rosinha Palhano, tia de seu avô, presenteou-me com uma daquelas marrafas espanholas antigas, de madrepérola, cravejada de pequenos brilhantes que chamou a atenção de todos. Tínhamos, no Ceará-Mirim, uma vida social muito ativa.
Naquele tempo não havia televisão, nem rádio, o transporte era precário. Valorizava-se a leitura, os saraus, o teatro e a música. Os circos e depois o cinema, que apareceu já em meados ou fins da década de 1920, tornou-se uma coqueluche. Ir ao cinema exigia, para os homens, paletó e gravata. As mulheres eram elegantíssimas. O cinema então era falado e fazia-se acompanhar pela musica. Todo cinema tinha de ter um piano. Por muito tempo, Beatriz Ramalho, nossa prima, tocava piano no cinema, que servia de fundo para os filmes. Era muito bonita e elegante. Uma das moças, se não a moça mais bonita do Ceará-Mirim do seu tempo. Também fazia parte dos hábitos sociais a troca de cartas. Se íamos visitar alguém, mandava-se antes um bilhete ou carta comunicando ou pedindo autorização para a visita que transcorria num determinado lapso de tempo.
Um dos passatempos que encantavam os jovens eram os Questionários de Proust, nos quais a gente deixava escritos os nossos gostos e preferência. Trocava-se poesias manuscritas e os jornaiszinhos escritos a mão, de caráter cultural, circulavam nas famílias, de casa em casa. Rara a moça que não tinha um caderno no qual anotava pensamentos recolhidos da obra de grandes autores. Inventava-se de tudo para afastar o tédio e animar os dias que eram muito compridos e custavam a passar. Havia o que se chamava de “cerimônia”, respeitavam-se as convenções e as normais socialmente impostas. Alguns, porém, exageram e acrescentavam suas próprias restrições. Algumas famílias cultivavam isso como uma característica que as acompanhavam por toda a vida. Sem dúvida havia muito preconceito contra as pessoas que não podiam atestar suas origens.
Ah, Capela! Capela! Quantas boas lembranças esse nome me traz. Naquela época já era um velho engenho, desses muitos engenhos que havia no Ceará-Mirim de minha meninice e mocidade, a maioria já de fogo morto, depois de terem contribuído geração após geração para a riqueza e o prestigio da terra que sempre me sugeriu a existência do Paraíso. Era um lugar de muito trabalho e fartura. Lá, confraternizávamos e desfrutávamos das benesses de que é pródiga a terra, que sustenta a vida e recompensa o homem de seus esforços. A coalhada ali produzida era deliciosa; consistente e macia, coberta de uma nata espessa e gorda, raiada de raios dourados de manteiga. Tinha a brancura da goma fresca. Copiosos e de morados almoços em torno da grande mesa patriarcal encerravam a manhã, presididos por Dona Maroquinhas, quando se achava em Capela ou por Agenor, que se comprazia com a alegria de todos e cuidava para que a nossa estadia em Capela fosse inesquecível.
Adorávamos esses momentos em família, que para mim eram celebrações, as mais queridas e desejadas das celebrações. Sequer suspeitávamos da existência do mal. Um dos momentos mais esperados era o banho de rio, de água translúcida, fresquíssima, quase gelada, à sombra das grandes copas de árvores seculares, ainda assim opulentas de seiva, onde os pássaros faziam seus ninhos e saltitavam de galho em galho, trinando incansavelmente. Afinal, não há alegria sem musica. E ali tínhamos, graciosamente, uma orquestra de pássaros. Num desses dias, por causa de uma câimbra, quase me afoguei. Fui socorrida por Jorge Moura, que se unia a seu avô por uma mocidade que vinha da infância e adolescência de ambos. Eram inseparáveis, antes e depois de nossos casamentos.
Edith era inteligente e criativa. Fazia poesias e paródias, inventava jogos e brincadeiras para tornar essas confraternizações inesquecíveis. Surpreendia-nos com pequenos mimos. Como Agenor, gostava de recitar e tinha um verdadeiro repertório de versos. Tinha o espírito algo satírico e às vezes glosava os ridículos da política ou de figuras que faziam algum esforço para serem notadas. Sempre riamos de sua astúcia. Eram muito animados esses dias em Capela.
Em algumas ocasiões que se tornavam especiais, Dona Maroquinhas contratava músicos da redondeza, improvisando bailes, pois um dos prazeres dos moços daquele tempo consistia em dançar, dançar, dançar. Era uma diversão muito apreciada e, ao contraário do que disse Machado de Assis, não constituía apenas um prazer dos olhos. Embora viúva há muito tempo, sua casa não era um mausoléo nem uma clausura. Era uma mulher que sabia alegrar-se com a nossa alegria, a grande alegria de Agenor e Edith, recebendo-nos naquela casa que se tornaria parte das nossas recordações mais queridas. Quando enviuvei, ela e Agenor quiseram que Alcides se casasse comigo, mas estava escrito que de seus filhos apenas Agenor se casaria. Era muito comum, naquele tempo, as pessoas ficarem solteiras, ás vezes por índole ou por falta de oportunidade. A engenharia dos casamentos era complicada. Havia muita discriminação no Ceará-Mirim.
Apurava-se muito a qualidade, como se dizia. Quando um namoro começava, a primeira coisa que os pais queriam saber era a origem da família do namorado ou da namorada. Se os avós tinham uma boa origem, já era um bom começo… Dizia-se: “É filho de fulano e neto de sicrano”. “Ah, é boa gente. Tem origem… Em suas veias corre o sangue de gente decente e honrada…” Era o costume antigo. O sentido da família era muito arraigado. Não era raro que uma família decaísse ou ficasse desacreditada para sempre por ter em sua crônica um fato duvidoso ou reprovável. Os preconceitos eram praticamente intransponíveis quando não imperdoáveis. Contudo, como toda regra tem exceção, havia aqueles que procuravam entender as razões alheias e a conviver afrouxando um pouco essas amarras.
[Manuscrito incompleto.]