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Por que Câmara Cascudo não entrou na Academia Brasileira de Letras

Em O Colecionador de Crepúsculos, publicado em 2003, a filha do escritor Luís da Câmara Cascudo faz um registro curioso sobre o motivo pelo qual o seu pai se recusou a entrar para os quadros da Academia Brasileira de Letras, para disputar a vaga com amigos.

*Anna Maria Cascudo Barreto

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Desde pequena testemunhei diversos movimentos de intelectuais para que papai fizesse parte da Academia Brasileira de Letras. Ficava feliz com o reconhecimento ao seu labor provinciano, cada vez mais internacional, mas sempre se recusou. Tinha imenso respeito pela Casa de Machado de Assis, onde se cultuava a dedicação às letras e aos livros, justamente seus maiores amores.

Argumentava não desejar sair de Natal e brincava dizendo que ficaria parecendo “um rei do Congo” de fardão, etc. e tal. Mas sempre notei que, recebidas as suas recusas, se quedava um tanto melancólico, balançando-se na rede, companheira de todas as horas, o dedo elegante fazendo um cacho no cabelo farto, os olhos verdes parados…

Sentia eu que, apesar da irreverência nas brincadeiras de se dizer “eterno noivo” da Academia, “sem o desejo da cerimônia do casamento”, havia algo muito forte a impedi-lo de se candidatar.

Perguntado porque fundara a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, a Sociedade Brasileira de Folclore, incentivava tanto o Instituto Histórico e Geográfico do RN, participava ativamente de tantas entidades culturais do Estado, do Brasil e do exterior, explicou que “as Academias exercem função seletiva e unitária, embora sejam impopulares para a grande maioria dos que não participam”, acrescentando que “reconheço muitas injustiças e algum corporativismo, já que nomes reconhecidamente merecidos lá não se encontram, enquanto outros, apenas impulsionados por política e interesses outros, são escolhidos.” Finalizando, disse ainda: “Mas esses fatos aleatórios, normais à natureza humana, não retiram o brilho de uma reunião de nomes de cultura.”

Outra vez, mostrou-me comovido uma carta de Guimarães Rosa, com palavras elogiosas à sua “caudalosa erudição” e repetindo não se conformar com a sua ausência na Academia, que “só se engrandeceria com um intelectual do seu porte.”

Quando recebeu o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores de São Paulo, pelo conjunto de sua obra, em 1977, observei sua alegria no convívio com personalidades tão semelhantes a ele. No entanto, antes de se saber vitorioso, deu uma entrevista a um jornal paulista, dizendo que “votaria em Barbosa Lima Sobrinho, cujos méritos literários e sua figura humana não podem ser nem discutidos. Amigo do peito há mais de trinta anos, e que a vida toda pretendeu me levar para a Academia Brasileira de Letras, de quem vou morrer noivo sem casamento…” Havia tanta incoerência em suas atitudes, que não me contive e lhe escrevi um bilhete, mais ou menos nesses termos: – “Papai, observo que em Natal você vive muito solitário, sem a presença constante de pessoas que tenham seus objetivos e interesses; enfim, seus iguais, seus colegas. Por que não se candidatar à Academia Brasileira de Letras? Você me repete o seu carinho e admiração por Rachel de Queiroz, Austregésilo de Athayde, Antônio Olintho, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Gilberto Freyre, Josué Montello e tantos outros, e por que não ficar junto deles pelo menos uma vez por mês? Iria lhe fazer tanto bem!!!…”

Ele olhou sério para mim, e comentou: “Maldita mentalidade jurídica, de pesar os prós e os contras, tem você!…” E, como estávamos na sala de estar, segurou-me pelo braço, levou-me à biblioteca, cerrou a porta e fez uma confissão que nunca revelei a ninguém, a seu pedido…

“Reconheço, minha filha, que você sabe de mim até mais do que deveria. Será por que somos tão parecidos? Eu seria muito feliz ao lado deles, embora também seja venturoso aqui, na minha cidade. O que ocorre, na verdade, é que eu, por temperamento, jamais aceitaria pedir votos para mim mesmo (já confessei isso a Guimarães Rosa) e, pior ainda – isso nunca disse a pessoa alguma, só a você, e nada de contar esse segredo a qualquer repórter seu amigo – acharia profundamente desagradável concorrer com colegas a quem admiro e quero bem. Perder seria ruim, mas a vida já me habituou a encarar filosoficamente as perdas, mas ganhar, Any (assim ele me chamava), ganhar de um amigo, seria para mim uma violência!… Assim explico que ouço pouco, que não me habituo a aparelhos de audição, que não desejo nem quero sair de Natal, e vou “enrolando” esta eterna noiva, a quem tanto amo, sem concretizar um casamento que seria estupro mental, pois me pareceria uma corrida de obstáculos entre parceiros… Será que deu para você entender?”

Abraçamo-nos emocionados. Papai ainda me revelou que duas honrarias do seu currículo, que a ele envaideciam e alegravam, eram o Prêmio João Ribeiro, de Erudição, e o Grande Prêmio Machado de Assis, pelo Conjunto de Obras (Literatura Oral, Cinco Livros do Povo, Geografia dos Mitos Brasileiros e Antologia do Folclore Brasileiro).

Saí da biblioteca com um peso nos ombros; não apenas pela responsabilidade de guardar um segredo que ele nunca confessara nem a mamãe, mas principalmente meditando na grandiosidade do seu caráter.

Quem deixaria de desejar ganhar algo, para não magoar outrem, no mundo de hoje?

Finalmente, decidi (eu que sou contrária a divulgar seus diários, seus bilhetes, e tenho dele inúmeras cartas que jamais mostrarei a pessoa alguma) revelar sua intimidade, na certeza de que há uma curiosidade nacional a este respeito.

Ele não foi acadêmico, na realidade, apenas para não concorrer com amigos… Uma delicadeza que não existe mais neste mundo de “salve-se quem puder” e “cada um por si”. Havia alguém que ficasse mais feliz em impulsionar uma carreira, ajudar uma vitória? Foi a pessoa menos egoísta que conheci…