*Franklin Jorge
Reiteradamente, perguntam-me e têm-me perguntado sempre – “por que escrevo” –, ou “como descobri que…” Essa curiosidade, presente em quase todos os que cultivam o prazer da leitura e, em todos aqueles que, em algum dia próximo ou distante pretendem escrever ou já escreveram “umas coisinhas”, “só para si”, como tenho observado em encontros e conversas fortuitas ou programadas, cada vez mais raras, agora que nos tiraniza essa parafernália tecnológica e o contato entre humanos tornou-se uma conquista e uma raridade.
Há muita metafísica nessa indagação que instiga a curiosidade, sem a qual, segundo a lição de Pound, não há criação. Nem arte. Não há, em resumo, a ação do criador sobre a matéria informe, as idéias praticadas e palpáveis, quando não traduzida pelo entendimento.
Mesmo depois de tantos anos no exercício desse ofício de escrever, surpreende-me essa indagação que me atinge, a cada vez, como um disparo à queima-roupa e tem o condão de suscitar tantas respostas que variam conforme o temperamento, o processo de aprendizado e afirmação intelectual de cada um que persiste em escrever, como projeto de vida, negócio, ou criação de uma obra capaz de perdurar.
Porque escrevo
Não tenho ignorado essa provocação, uma questão recorrente com a qual tenho me deparado no curso da existência. Uma questão, enfim, sobre a qual tenho pensado. Uma questão que se faz presente, em algum momento, na vida de todos, em diferentes épocas: Villaça e Baudelaire, dos escritores que foram referências para mim. Questão que suscita essa coisa misteriosa que vem de muito longe, talvez das brumas mitológicas da infância. Uma expressão de humanidade e criação. Escrever pressupõe uma cultura. Um bom suprimento de paciência e, sobretudo, temperamento. O temperamento que faz tanta falta a um escritor. A forma de escrever. Estilo e uma maneira profunda de ser. Um estar no mundo como protagonista de um processo de criação literária. Todo um processo de realização silencioso e invisível aos olhos do público, a elaboração de um artefato estético com a sua transcendência e contundente realidade.
De tanto meditar, pensei que alcançara a síntese em seis palavras. Na verdade, quase todo escritor que pensa sobre o que o impulsiona a dispor das palavras, tem a sua própria resposta para essa pergunta que se faz, sempre, à queima-roupa. Quanto a mim, creio que sempre soube, desde o princípio de tudo, a razão porque escrevo. Em tempo algum me inquietou essa proposição. Podia duvidar, sim, de minha habilidade; de minha destreza; de minha intimidade com as personagens que estão em toda a parte, a espera de um autor generoso que acione o seu mecanismo.
Por que escrevo
Escrevo para dar vida aos mortos e voz a quem não tem voz. Escrevo porque ao fazê-lo justifico a minha própria existência, e colaboro para a criação de uma obra. Escrever dá sentido a duração humana. Ato, portanto, algo metafísico. Escrevo para dar aos mortos uma segunda vida; uma vida mais duradoura, através da escrita, que é a minha pátria. Escrevo porque a imortalidade, segundo a maravilhosa descoberta ou invenção de Proust, é possível, sim, mas somente através da criação de uma obra. Ora, é a obra que dá o Norte e justifica a nossa existência. Que, algumas vezes, dá emoções à vida. Razão por que tantos criam ou intentam criar, na suposição de perdurar e persistir, pela arte da escrita.
Pensei que chegara assim a alcançar uma síntese que contivesse, para mim, a própria essência dessa questão; como disse, algo metafísica e recorrente em minha vida de escritor. Sempre a fazer-se presente em momentos de solidão, de que necessita – como um alimento de primeira necessidade – o homem que se dispõe a meditar sobre a obra. A solidão necessária ao processo de criação; a solidão que é dos mais preciosos compostos das grandes criações intelectuais. Como ignorar que a solidão entra na composição da obra?, e constitui, quase sempre, com a memória, o seu principal capital. Sua manufatura intelectual.
Do desafio intelectual que emana dessa curiosidade sobre a origem, em cada um, da escrita, do ato de escrever, como uma expressão estética que resulta em materialidade e imanência, há muito o que pensar. Muita metafísica, diria, sob esse questionamento que deve fazer-se, a cada momento, todos nós que escrevemos ou ousamos fazê-lo sem a displicência de quem quer apenas se divertir, sem pensar que a arte é senhora exigente e tirânica. Consome e devora os melhores.
Uso da reiteração como um recurso de ênfase para evidenciar que escrevo para dar vida aos mortos, àqueles – seja dito aqui – que em algum momento doaram-me a sua humanidade, sua metafísica elaborada ou tosca, seu empirismo e, as vezes, sua esperança na vida. Sobretudo, para resgatá-los do esquecimento que equivale, como sabemos, a uma segunda morte, pois expõe a ingratidão dos vivos.
Escrevo para dar aos mortos, através da escrita, uma segunda vida mais duradoura que uma lápide. Escrevo, pois, para honrar e dar vida aos mortos. Para tecer-lhes essa coroa de Palavras. Escrevo, sobretudo, em minha própria satisfação, por uma misteriosa necessidade íntima, no afã de dar voz àqueles que não têm voz. Em síntese, creio que é por isso que escrevo – em plenitude, cônscio do que crio -, e muitos de nós escrevemos, seja dito aqui: para dar vida aos mortos e voz àqueles que não têm voz. Àqueles que me perguntam e a mim mesmo, diria ainda que escrevo para deter o Tempo; matando, assim, a Morte.
[08/09, 12/09]