*Antenor Laurentino Ramos
Muitas histórias de Ernesto Belmont se contam até hoje, em Nova Cruz, histórias que retratam bem uma das figuras notáveis daquele lugar no passado. São histórias de uma personalidade forte, da sua veia humorística e por que não dizer, de seu destemor? Ernesto era uma daquelas pessoas de quem não se pode esquecer! Marcou no seu tempo.
Uma dessas histórias se passa, em Nova Cruz, no período da chamada Revolução de 30. Os perrepistas, partidários do Governo Washington Luiz, viviam num clima de terror. Com a derrubada do poder da República Velha pelos seguidores de Getúlio Vargas e da Aliança Liberal e a conseqüente efervescência política dela resultante, quem antes era Governo, passava agora à condição de inimigo da ordem estabelecida, a ser perseguido e combatido pelos vitoriosos, tratado, por vezes, até como bandido. Era a chamada “caça às feiticeiras” tão comum em períodos revolucionários. Poucos seriam os que os que escaparam dessa perseguição. E Nova Cruz não fugiria disso, não seria uma exceção na história!
Com a Revolução, assumira os destinos da cidade, como Interventor, o Sr. Antonio Arruda Câmara, grande líder político da região. O Prefeito Mário Gadelha Simas tinha sido deposto, com ele terminava o império político de Nestor Marinho, chefe do perrepismo local.
Ernesto Belmont, grande amigo de Nestor e tio de Mário, era considerado persona non-grata pelos adversários do regime deposto, uma espécie de Eminência Parda. Diziam em Nova Cruz, que Nestor Marinho só fazia o que Ernesto Belmont quisesse. Assim sendo, eram eles o alvo principal da reviravolta. Andava, pois, tenso, o clima político na cidade.
Contam também que essa situação foi retratada, num folheto de um poeta popular da terra, numa literatura escrachada, inspirada pela hostilidade reinante, fruto natural da exaltação política do momento. Alguns desses versos ficaram no imaginário do povo da época. “Ernesto Pé-de-Quenga / está com cara de sepultura/ pois não pode mais comer / dinheiro da Prefeitura/”. O apelido dado a Ernesto Belmont, aludia a seu defeito físico congênito, um pé deformado, o que lhe desagradava bastante. E ia, assim, a linguagem, debochada e agressiva, visando mesmo a atingir, moralmente, os líderes do governo destituído. “- Acudam minha gente/ que é grande o fedor / ninguém sabe ao certo/ se é de Mário ou de Nestor”. Até Júlia Galdina, a amante de Ernesto Belmont, não fora poupada: “ A nega Júlia Galdina / da ataque todo instante / já não ganha mais dinheiro / pra manter seu restaurante”/. Era esse o nível do ambiente político do lugar. É, infelizmente, o lado feio e deplorável de toda revolução, pois que é dos homens que ela é feita. Com o passar do tempo, os historiadores tratam de apagar esse lado feio do movimento, colorindo-o com traços mais leves e heróicos.
Como se não bastasse, um grupo de partidários exaltados da Aliança Liberal, de lenço vermelho no pescoço e tendo à frente, figuras populares da cidade, como Paulo Dourado e Joaquim Salustiano, resolveu limpar o ambiente político local, segundo eles, do “detestável e execrado vírus do perrepismo”. Quebrariam, a partir dali, – e esse era o seu lema e grito de guerra – todos os retratos de lideres do Governo deposto que encontrassem. Quem fosse seguidor do perripismo, que se cuidasse, seriam dali, impiedosamente varridos. Não importava onde estivessem os tais retratos ou sinais outros do regime derrubado, e de repente, espalhava-se o terror em Nova Cruz e todos temiam a visita do grupo.
Já iam adiantados “os efeitos purificadores” da campanha, todo mundo, correndo a esconder os retratos ou nomes dos antigos líderes, por medo da dita repressão, quando alguém do grupo lembrou-se de um perrepista que ainda tenha sido visitado, Ernesto Belmont. “ – Falta o Cartório de Seu Ernesto, minha gente! Lá é que tem retrato de perrés! Vamos lá”! Diziam, animados.
Ao chegarem, em frente do Cartório, Ernesto estava sentado numa cadeira de balanço, na calçada, a fumar, tranqüilo, o seu cachimbo inglês. Deram boa noite. Foi quando Paulo Dourado, o chefe do grupo, falou: “Seu Ernesto, nós estamos aqui para acabar com tudo que tem a ver com perrepista, ouviu? Nós sabemos que no seu Cartório tem retrato de perrepista. Gostaríamos que o senhor nos deixasse entrar, pois queremos quebrá-los! Não queremos deixar nenhum sinal deles, aqui em Nova Cruz”!
Ao ouvir a explanação de Paulo Dourado, Ernesto levanta-se, calmo, da cadeira e diz: ” – Pois não, senhores! Podem entrar! Fiquem à vontade! Agora, só tem uma coisa, eu deixo você quebrarem os retratos, sim, mas só daqueles que eu indicar, está certo? Venham! Aproximem-se! E começou a mostrar os ditos retratos que estavam pendurados na parede, fazendo sobre cada um, um pequeno comentário. Este retrato aqui, minha gente, é do Dr. Alberto Maranhão, ex-governador e amigo meu. É um homem de bem. Eu não deixo vocês quebrá-lo! Este outro é do Dr. José Augusto Bezerra de Medeiros. Foi Governador também e amigo meu. Vocês não vão quebrá-lo, certo. Aqui é o Dr. Alberto Roselli, grande advogado, amigo meu. É um homem sério. Não permito que vocês o quebrem! Aqui está meu diploma de Tabelião Público de Nova Cruz. Foi Dr. Pedro Velho quem me concedeu. Vocês não vão quebrá-lo! E assim, sucessivamente. Mais na frente, estava o retrato de Dr. Augusto Dourado, antigo Juiz de direito da Cidade, o Dr. Dourado, pai de Paulo Dourado. Ernesto dirige-se então a ele, fitando-o demoradamente: “ – Paulo, eu acho que você reconhece de quem é este retrato, não é ? É de Dr. Dourado, seu pai, também amigo meu. Foi ele que me ofereceu como prova de amizade.
Agora, se você quiser quebrá-lo, fique à vontade! Disponha dele! Pode servir até de exemplo, não acha? Eu não farei nenhuma objeção. Pode começar! Aqui, Paulo, só tem homens de bem, ouviu? Então comece!
Silêncio total. Ninguém do grupo ousava falar, dizer alguma coisa. Aquilo era uma lição de moral para o grupo, e não havia como contestá-lo! Foi quando o mesmo Paulo, pego de surpresa, e como que, envergonhado de sua decisão de ali se apresentar como porta-voz do grupo, naquela ingente tarefa, pediu desculpas, não esperava por aquela:” Não, Seu Ernesto! Nós não vamos quebrar os seus retratos, não! Desculpe incomodá-lo! Vamos embora, gente! E saíram para não mais voltar.
Doutra feita, aconteceu na sua casa. Estavam ele, Candinha, sua esposa, entre amigos. Era um homem sério, intransigente. Não admitia fizessem-lhe perguntas descabidas, inconvenientes. Vaidoso, bonito e elegante, tinha consigo, como já se falou, um defeito físico congênito que muito o fazia sofrer: o seu pé direito era deformado. Fazia de tudo para escondê-lo. Calçava mesmo um sapato, especialmente fabricado para ele. Chegava até surtir efeito. Quase não se notava seu andar claudicante. Mas falar dele, era algo que lhe desagradava bastante. Foi quando uma mulher bisbilhoteira que se encontrava no grupo, resolveu, por bem, interpelá-lo, curiosa: “- oh, seu Ernesto, eu queria tanto ver seu pé! Os circunstantes interromperam a conversa, calaram-se. Ninguém dizia nada, só esperando a explosão.
Ernesto, de semblante fechado, não perdeu tempo. Olhou para ela, irritado e num tom áspero, disse-lhe “- Minha Senhora, o meu pé eu não mostro, não! Agora, se a Senhora quiser, e tiver interesse, eu lhe mostro outra coisa e sei que a Senhora vai gostar muito, quer? E a mulher, sem graça, só fez se calar. Dali por diante, não disse mais nada, arrependida, já, da pergunta feita. Ernesto Belmont, era assim! Quando provocado, não levava desaforos para casa, como se dizia na época.
E há mais uma outra história que dele se conta e que mostra muito bem o quanto era irreverente. O padre Aquino, seu amigo, gostava muito de passear a cavalo todas as tardes. Aproveitava para visitar os fiéis, percorria a cidade inteira, conversava com uns e com outros e a todos atendia. Ao passar, em frente do Cartório, estava Ernesto sentado na cadeira de balanço a tomar a brisa da tarde.
Padre Aquino , ao vê-lo, tira o seu chapéu e o saúda: ” – Como vai, Ernesto? “ E ele responde: “ – Vou bem, Padre Aquino! Me diga uma coisa: para onde vão vocês dois (ele e o cavalo)?” Padre Aquino só fazia sorrir. Sabia que seu amigo era assim mesmo, brincalhão e irreverente. Não tinha jeito! São fatos como estes que dizem bem de um homem que teve, reconhecidamente, atuação marcante no seu meio. É exemplo, sem dúvida, de coragem e de elevação moral. Deve ser imitado, em suas atitudes, pelas gerações novacruzenses de hoje. Feliz da terra que tem vultos desse porte!
Antenor Laurentino Ramos – Professor e memorialista, autor do livro Memorial da Anta Esfolada [Editora Feedback, Natal, 2014].