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Poucos como Dante Milano

Fundador de Navegos escreve sobre um dos poetas de sua admiração e relembra a vez em que o viu passeando ao crepúsculo em Copacabana, diante de sua casa, talvez a última da Avenida Atlântica. De sobretudo e chapéu pretos, andando lentamente, lembrou-me fisicamente Ezra Pound.

*Franklin Jorge

Houve um tempo na vida de Dante Milano que ele sonhava dormir debaixo da lua, pensando num verso que descrevesse a morte.

Extenuado pela arte, queria sobretudo escrever sem pensar, embalado pelo movimento inconsciente das ondas, na esperança de voltar a ser criança outra vez.

Nunca soube de que cansaços lhe proveio o peso que carregava sobre os ombros. Absorveu a existência e viu todas as coisas numa coisa só. Compreendeu tudo desde o começo do mundo, por isso adiava o inútil suicídio.

Dante seria um doido? Um mago? Um visionário? Aos noventa anos, vivendo o momento, pensava, como sempre, para esquecer que tudo é exílio. De tão lúcido, sentia-se real.

Como alguém que se esquecia dos anos, dos meses, dos dias, lembrava-se, por milagre, de momentos. Lembrava-se antigamente do futuro. E sentia, na vida que contém e transborda, qualquer coisa de agora – mas de eterno – que manhosamente capturava em versos.

Não gostava de ser admirado e, nos últimos anos da sua dilatada existência, viveu recluso em Petrópolis, pensando no céu visto do inferno.

De sua janela, na sala de leitura onde mais lhe agradava ficar na companhia dos livros e dos quadros de Portinari e de Di Cavalcanti, seus amigos de boemia literária na Lapa, descortinava-se a plácida e luminosa paisagem serrana.

Há muitos anos, inspirada pela amizade e admiração, Isolda Hermes da Fonseca o retratou na condição de vate. Uma tarde, no silencioso estúdio da Gávea, ela mostrou-me o quadro inacabado descansando sobre o cavalete.

Impressionou-me vivamente a argúcia e a perspicácia com que a artista apreendera, na estreita dimensão de uma tela ainda úmida, a natureza vulcânica e o ar de águia do poeta, com o que emanado de uma nicromântica luz faustiana. Antes de mim, Roberto Marinho contemplara longamente esse retrato, impregnado de angústia e discernimento.

No dia seguinte, ainda sob o impacto daquela epifania, passeando com Villaça entramos na Livraria Agir da Rua México, no Centro do Rio, onde descobrimos um único e maltratado exemplar de Poesias, publicado em 1958, por iniciativa de um grupo de amigos, quando o poeta, ainda inédito em livro, se aproximava dos cinquenta anos. Meu amigo, a quem havia pouco eu contara sobre o quadro, adquiriu o livro sem hesitar e nele apôs uma dedicatória que desde então me acompanha como um talismã.

Uma única vez vi o poeta, ao crepúsculo, caminhando com lentidão pela avenida Atlântica, nas imediações do Posto Seis. Ele morava por ali, num velho e elegante palacete remanescente de uma época áurea de Copacabana, na companhia de quase uma centena de gatos que piedosamente recolhia, tratava e alimentava. Dias depois, os noticiários da tevê comunicavam a irritação de seus vizinhos para com os gatos do poeta, o que teria motivado em seguida a sua mudança para a aristocrática e tranquila Petrópolis, onde já morava a atriz Beatriz Segall, sua amiga.

Avesso à publicidade, Dante ainda não sofria da Síndrome de Parkinson que o atormentou no fim da vida. Porém já era, por essa época, o último sobrevivente de um grupo de artistas formado por Villa-Lobos, João Lins Caldas, Portinari (com quem morou dois anos), Di Cavalcanti e Augusto Frederico Schmidt, poetastro gordo e maquiavélico que Albert Camus, em sua passagem pelo Brasil, imortalizaria com as tintas da caricatura e do ridículo.

Emocionado, acompanhei o poeta à distância, por duas ou três quadras, refreando o impulso de trocar algumas palavras com ele, porém lembrei-me da sua ojeriza de ser reconhecido e abordado na rua. Pareceu-me um homem de gostos refinados, metido naquele terno escuro talhado sob medida por um profissional qualificado. Contudo, havia nele alguma coisa de selvagem. Elegante, aristocrático, pareceu-me fisicamente com Ezra Pound, um dos meus mestres.

Filho do famoso maestro Nicolino Milano, tão ligado ao Rio Grande do Norte pelo brilho musical conferido aos saraus do governador Alberto Maranhão, Dante não concluiu cursos formais. Poeta desde os vinte anos, nunca se engajou em nenhum movimento literário ou político. Descobriu a poesia na escola de uma forma nada poética. Quando errava muito o português, o professor mandava-o copiar vinte estrofes de “Os Lusíadas”, livro que se tornou o seu pesadelo e o motivo do seu desinteresse pela escola.

Seu poeta de cabeceira era Fernando Pessoa. Porém, mais do que de brasileiros ou portugueses, gostava de Dante e Virgílio. E devorava a prosa de Machado de Assis com sofreguidão…

Por toda a vida, Dante Milano curtiu a morte deliciosa que o arrastava pela mão.

Em destaqe, Dante Milano pintado sem olhos por Portinari sob a figura do Vate; acima, o poeta em sua velhice. mitológica do Vate