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Precisamos falar sobre Pierre Boulez

Nesse artigo, Bruno Gripp comenta sua aproximação de obra de Pierre Boulez ao longo de sua vivência com a música erudita do século XX e XXI, uma relação duradoura e mutável.

*Bruno Gripp

[email protected]

 

Minha relação de ouvinte com a obra de Boulez, é preciso ser sincero, nunca foi exatamente de total aceitação. Quando adolescente, empolgadíssimo com a música contemporânea, eu tive um impacto profundamente positivo pela sua obra. Uma característica central da música de Boulez são as paisagens sonoras que ele cria: seu uso do timbre e da textura musical (mesmo em obras para solistas, como a Segunda Sonata para piano) é capaz de criar paisagens únicas na história da música, e o primeiro impacto é verdadeiramente revigorante. Poucas coisas são mais fascinantes do que ver a riqueza textural de uma obra como, por exemplo, Pli selon Pli (“dobra sobre dobra”). Mas as audições repetidas de Boulez me trouxeram um certo cansaço: sua música, em profundo contraste com a música de Messiaen (ambos se conheceram, tinham inclusive o costume de conversar no metrô de Paris), não tem nenhum objetivo simbólico, não busca emocionar o ouvinte. Não quero dizer, com isso, que ela não comunique, ela comunica de outra maneira, por meio das texturas, das harmonias da estrutura da obra. Recentemente, ouvindo a obra de Boulez, eu tenho sido capaz de identificar seus pontos positivos, mas não é uma música para se ouvir constantemente (mas também, que música é?).

Pensando-se sobre o seu legado, apesar dessa fama recente como maestro e suas aventuras (muito bem sucedidas) no meio da produção cultural (Boulez é responsável pela criação da Philarmonie de Paris, do Ensemble Intercontemporain, um importante grupo dedicado à música contemporânea, do IRCAM, um centro de pesquisa musical, etc.) e também na filosofia da música, toda essa atividade, no fundo, converge para sua música, para a composição. De certo modo, mesmo a atividade de Boulez como regente funcionou como uma “propedêutica” para a música moderna. Com efeito, em toda a sua carreira, ele se dedicou quase exclusivamente à tradição musical que ele via desembocar na sua música: Wagner (ele tem gravações famosas do Anel e de Parsifal), Mahler, Stravinsky, Debussy, Bartók e os compositores vienenses e Messiaen. É difícil julgar estilos de regência, mas Boulez certamente é um dos intérpretes mais considerados de boa parte desses compositores (com exceção de Wagner e Mahler, onde sua regência tende a ser mais controversa). Seu estilo de regência era curioso não apenas por não usar batuta, mas também por soar seco em compositores da tradição romântica: o matemático Boulez sempre teve a tendência a examinar a música mais pelo seu viés estrutural do que pelo viés emocional.

Dessa forma, é inegável que Boulez se enxergava como membro de uma tradição musical viva. De todos os compositores que lhe foram contemporâneos – e infelizmente todos eles já morreram: Berio, Stockhausen, Maderna, Ligeti -, certamente foi ele o autor mais voltado ao passado. Dentre eles, também é de Boulez a carreira que mais se aproximou da música do repertório tradicional, tendo voltado ao passado em busca de inspiração, e não de pura referência intermusical (como acontece na obra de Berio, por exemplo).

De certa maneira, essa visão da música como uma evolução diacrônica morre com ele. Os caminhos da música nos últimos anos se afastaram daquela posição tão bem encarnada por Arnold Schoenberg e teorizada por Adorno, de que a música possuía um caminho claro e cabia ao artista enfrentar e levar à frente essa tradição, em busca da obra de arte ideal, do futuro. Essa, podemos considerar, é a posição modernista por excelência. Não quero dizer com isso que a vanguarda acabou, longe disso, mas sim que ela não se enxerga mais como o elemento de uma história da música unitária.

Isso não quer dizer Boulez fosse ingênuo e preso a uma concepção passadista, nada mais longe disso. Sua obra não se limita ao serialismo total, como os ouvintes menos informados costumam pensar sobre sua música. O serialismo integral consiste nas adoções de “matrizes seriais”, à maneira das matrizes do dodecafonismo da Segunda Escola de Viena, para todos os elementos da música – isto é, além de séries de alturas, há séries de ritmos, timbres, dinâmicas, etc. Mas, apesar da fama, não é toda a obra de Boulez que se filia a essa visão, que aparece conspícua em peças como Explosante… fixe, e Le Marteau sans Maître. Ao longo de sua vasta carreira, apesar de não tão vasta produção, Boulez se apropriou de talvez todas as grandes descobertas musicais dos últimos sessenta anos.

Graças à enorme influência que a poesia de Mallarmé teve sobre seu pensamento, e também graças a toda uma corrente de pensamento musical, a sorte tem uma influência em sua obra. Decerto não falamos de extremos, como o caso de John Cage, mas peças como a Terceira sonata para piano (cuja composição se iniciou nos anos 50 e nunca foi completada, apesar do compositor ter dedicado muito tempo a ela) tem elementos estruturais aleatórios. Aliás, cabe a Pierre Boulez o batismo do termo “música aleatória”, em uma série de artigos sobre esse conceito.

Derivada da mesma ideia, a noção da apresentação musical como um ritual, um evento único, foi constantemente trabalhada pelo compositor. Répons, obra já mais recente, foi um trabalho que explora, em parte, a aleatoriedade, em outra parte, a disposição dos músicos no espaço (basicamente a orquestra se encontra no centro e os solistas em círculo ao redor da plateia) e os choques de textura entre esses jogos sonoros.

Uma consequência dessas duas noções está no fato de que a música, como ficou bem claro para muitos compositores do pós-guerra, não é um elemento fechado e imutável. Do contrário, ela é incessantemente recriada a cada apresentação, em que o compositor não se comunica para um ouvinte isolado, mas sim para um grupo de pessoas que se predispôs a estar lá.

Curiosamente, a evolução da história da música se deu no contratempo dessas descobertas: pouco a pouco a música tornou-se, graças à gravação, cada vez mais fixa e seu contexto cada vez mais atomizado. A música hoje é muito menos aleatória e ritualística do que era nos anos 50. Cada vez menos ouve-se música coletivamente, feita na hora, e cada vez mais se consome música gravada, no isolamento não mais sequer de casa, mas de seus fones de ouvido.

Cada vez mais, nesse contexto de indústria cultural, o papel de compositores de vanguarda como Boulez se torna obsoleto, a ponto de nos perguntamos se haverá outro enfant terrible capaz de chocar com suas ideias e sua música o establishment musical. Temo que não, e uma mostra dessa crescente irrelevância está no fato de que até hoje o compositor é mais conhecido por suas obras de juventude, como a Segunda Sonata para piano, Pli selon Pli e Le Marteau sans Maître, a despeito de recentes composições mais refinadas, que lembram um Debussy pós-moderno, como a já citada Répons, e como Sur Incises e outras.

Tudo isso mostra que Boulez foi uma epítome do compositor do século XX, tanto por ter reunido diversos pensamentos e tendências, quanto por sua posição emblemática de pensador e divulgador. Com sua morte, podemos decretar o fim do modernismo musical.