*Francisco Alexsandro Soares Alves
Eu estou em uma fase beethoveniana. E isso tem a ver com os últimos quartetos de cordas dele, essas obras que são, para muitos, o ponto culminante da música absoluta, pura, sublime. O idealismo pontua que essas obras são o non plus ultra, o insuperável, da linguagem estritamente musical.
São obras ásperas, todas elas. Rudes, brutais, muitas vezes violentas e de um humor estranho. Parece que a musa estava raivosa com Beethoven ou ele estava mesmo vencido pelo Destino. Aquele Destino da Quinta. Mas na Sinfonia em Dó menor há um heroísmo e triunfo finais. Nesses quartetos há muita melancolia, tristeza e alegrias derrotadas.
Mesmo quando insinuam aquele bom humor típico das grandes obras de Beethoven, como a Sinfonia em Ré menor, a Nona, esse humor é sempre de uma expressão sofrida. Aquele bom humor, aquela alegria, presente na sua última sinfonia, que sempre abraça a força, afirmação e a vitória, encontrou uma derrota distante, interior… vivida.
São obras para Beethoven, mas por sobre quais correram já rios de tinta alheia.
E o que me vem agora, ao ouvir o Opus 135, o Quarteto número 16, em Fá maior? Ontem, ao ouvir o número 14, fui tomado por imagens proustianas e essas imagens caminharam lado a lado com o fluir das cordas. Agora, ao ouvir o décimo sexto, meu pensamento se volta para uma frase nietzschiana: a vida sem música seria um erro. E me pergunto: que erro e que música?
No início do quarto movimento desse quarteto, Beethoven coloca as frases Es muss sein? Muss es sein! – Assim deve ser? Deve ser assim! A pergunta é feita com as notas sol, mi, lá bemol (em fá menor) e a resposta com lá, dó, sol (em fá maior) sendo repetida com sol, si bemol, fá (em fá maior), o movimento é dominado Der schwer gefasste Entschluss – A difícil decisão. Não apenas termos musicais, como allegro ou presto, mas a palavra vernácula precisa. Depois de ter usado palavras na Nona, em seu último quarteto Beethoven recorre novamente ao verbo.
Ora, mas isso e novamente em plena música absoluta? Mas isso e novamente em plena música absoluta, ora! Assim deve ser… E por que não?
O que me ocorre é a impossibilidade de uma realização completa da música enquanto linguagem e também, que cidadão forma-se a partir da soberania da música, que se dá com o advento da sociedade burguesa individualista e industrial desde o século XIX?
Não creio que a vida sem música seria um erro, assim porém acreditava quando jovem e fascinado pela visão de Nietzsche sobre essa arte, não percebi as implicações mais sérias, para os dias de hoje, dessa atitude que é estética e que acabou sendo colocada no século XX, por um lado, em um idealismo do sublime e do absoluto, pelo pensamento de Adorno e um processo de massificação engendrado pelo cinema i.e., pela indústria de massas.
Isso tornou o indivíduo novecentista um ser mais da audição do que da leitura, porque a literatura foi substituída pela música. Lê-se menos livros e ouve-se mais música – e quase sempre a péssima música popular, seja brasileira ou estrangeira. Uma cultura musical privada da palavra é massificadora e imbecilizadora.
Hoje, chegamos a tal ponto que sequer a música como um todo é ouvida. A música das periferias, basicamente, é ritmo. É rítmica. E o ritmo é a parte mais primitiva da música. A regressão da capacidade auditiva, que nos fala Adorno, chegou a um ponto que nem mesmo Adorno previu. A letra que acompanha a música, hoje, é apenas uma repetição de posições sexuais do ponto de vista da ralé, um sobe e desce corporal transferido para uma batida cujo efeito é gerar a imbecilização coletiva.
Mas não é apenas essa música periférica, popular, a questão. Essa música é para indivíduos sem a mínima educação musical.
O problema maior é a música erudita absoluta e pura. É nela que aparece o germe da alienação musical. Uma música sem palavra serve a que? A palavra ordena, cria, politiza!
Uma música assim não me admira ter sido elevada a uma enésima potência do sublime por uma sociedade como a burguesa. Porque ao se tirar o referencial, se tira o pensamento certo, bem concatenado, bem administrado, a palavra, que torna seu enunciador, Senhor! Sem palavra, sem verbo, sem referencial inteligível, somos criaturas massificadas.
A música absoluta fala ao Sublime, ao Infinito, ao Puro! Balela idealista pequeno burguesa.
Precisamos ler mais. Precisamos ser mais franceses. Precisamos nos afastar desse idealismo alemão.
Músicos, até Beethoven, ele mesmo, precisou ser assim! Muss es sein!
Beethoven precisou da palavra, em sua música tão absoluta, porque a palavra é o que há de mais humano e consciente no ser. Beethoven assim a usa para elevar ainda mais a sua música ao terreno não de sons imateriais, mas da poesia.
Uma vez, Franklin Jorge disse-me: “eu não tenho paciência para ficar uma hora sentado sem fazer nada, ouvindo música. Prefiro ler um livro.”
Precisamos ser mais franceses.