*Renato de Medeiros Jota
A situação da pandemia mundial, covid 19, me levou a pensar sobre a questão do isolamento e suas consequências para psique; Isso nos leva a concluir que existe uma ausência de temas relativos ao isolamento, solidão e principalmente quando que abordem temas como prisão. Claro que esses temas são abordados de forma esparsa e ocasionalmente, os temas são tratados de forma periférica e passam a margem das hqs mainstream. Puxando aqui pela lembrança, assuntos relativos a prisão por exemplo, não são exploradas com frequência por si só, pois a prisão é mais evocada como cenário do que como incursão temática nas páginas sequenciais de uma hq. Obviamente, podemos citar várias hqs que abordam o tema, mas sempre tendo como um herói ou personagem que vai para lá, geralmente por engano ou não, conduzindo geralmente a uma história de redenção. Mas a centralidade do cenário prisional só serve para passagem e adereço da jornada do herói e não tema da história.
Histórias em Quadrinhos que abordam o tema Prisão são raras, e as que abordam só o fazem como tema passageiro e de transição. Nesse sentido personagens como Justiceiro, Demolidor, Arqueiro e Lanterna verde que já ficaram atrás das grades e encarcerados, usam a prisão como trampolim para abordar outros temas que envolvam a carceragem, mas não o próprio ambiente prisional. A prisão é apenas um mote para fazer a história prosseguir e o assunto é logo esquecido no decorrer da história. Normalmente essas histórias objetivam ressaltar o aspecto do submundo fora das grades fazendo um link com o atrás das grades, em uma fantástica relação entre o dentro e o fora. Nesse sentido percebe-se nas páginas dos quadrinhos o viés moral, numa tentativa de desromantizar a criminalidade e ressaltar as qualidades dos heróis e os desafios a que tem de superar.
Essas histórias de presidio tem como objetivo lançar um olhar desfocado do crime e de sua população carcerária. Realçando os vícios, crimes, a imoralidade das ações e vilania dos criminosos. Os aspectos dos crimes são hipervalorizados no conteúdo das páginas, sendo uma denúncia panfletária dos danos que uma vida assim ocasiona ao indivíduo. Obviamente, o que temos aqui é uma visão míope da questão sobre o público carcerário. A prisão na realidade é um grande jogo dialético entre o que está fora e livre para o que está dentro e preso, um jogo entre o que está fora do círculo você é livre e dentro dele está preso. Nesse sentido, existe uma relação intima igualmente entre o ser e o ente tão falado por Heidegger, olha a filosofia de novo!! Em que se pode prender o corpo tido como ente (uma coisa entre tantas outras) na prisão retirada do Lebenswelt (mundo da vida) o fenômeno entre tantos outros, enquanto o ser é livre mesmo preso por ser subjetivo e capaz de vislumbrar horizontes imaginados ou não. Esse tema nos convoca a reflexão sobre a prisões subjetivas que erguemos para nós mesmos.
Podemos encontrar outros temas nas páginas sobre o assunto prisão nessas hqs como a questão da solidão e do isolamento, algo tão familiar quanto o que podemos vivenciar em nossa casa, principalmente em época de pandemia como o que temos agora. Reparem só, alguém encarcerado (imagine o mais comum dos presos) em uma prisão comum, que partilha uma cela com vários outros presos, sem acesso a nenhuma comunicação, pode ser considerado uma pessoa solitária? Parece ser uma pergunta absurda, mas não é. Imagine que mesmo em uma prisão, um prisioneiro é um corpo entre tantos corpos, cada um mais solitário do que o outro. O que é pior, está preso em um habitat violento e muitas vezes insalubre. Essa história das prisões é a verdadeira história não contada e que faz todo o sentido quando abordada em uma hq que tem esse universo como tema.
Podemos aqui fazer uma relação com o homem dito civilizado, que mora em apartamento e condomínios cercadas por enormes muros e porteiros especializados em vigiar quem entra e quem sai das residências. As casas com grossas grades se multiplicam devido à violência e assaltos, muitas vezes também para se livrar de vândalos. As indústrias e seus trabalhadores também parecem com pavilhões de carceragem para os trabalhadores que ficam presos por oito ou doze horas para ganhar o sustento por mês, uma prisão deliberada, apoiada jurídica e politicamente. Repare que para o trabalhador não tem como ele escolher não trabalhar, sua sobrevivência depende disso. A prisão não se resume somente ao ambiente de fora, mas podemos constatar que os diversos vícios lícitos ou ilícitos também aprisionam o indivíduo. A comunicação também tornou-se um meio de escravizar o indivíduo, o fazendo mergulhar em um carrossel de informações que o prende em uma gaiola subjetiva.
O que vale destacar aqui é as histórias de crimes e sua abordagem não serem novidades, temos o livro Crime e castigo de Dostoiévski que prova isso. Temos ainda Arquipélago Gulag de Alexander Soljenítsin e Papillon de Henri Charrière, Além de Contos de Kolimá de Varlam Chalámov é outro exemplo de que histórias de prisão e seus personagens são ótimos enredos para serem narrados. O que tem todos eles em comum? Sua humanidade, que devemos desenterrar dos entulhos da criminalidade e suas penas que empurram seus personagens para a lama do anonimato.
Podemos citar aqui algumas boas hqs que exploram tanto o cenário da prisão quanto os personagens que vivem lá, como por exemplo Morgan de José Ortiz e Antônio Segura, também temos Ken Parker uma história totalmente passada na prisão, mas explorando o percurso do herói do título, sua vida e rotina em um presidio. Além deles podemos encontrar no Mangá Na Prisão de Kazuichi Hanawa a exploração do cotidiano de um presidio contado por quem viveu e estava lá. Nesse mangá constatamos aspectos interessantes sobre o cotidiano de um presidio, sua rotina, pensamentos, hábitos e reflexões sobre a condição de prisioneiro e do local de seu cárcere. Uma autêntica abordagem direta e sincera sobre crimes, moral, fé, liberdade e humanidade. Também podemos encontrar uma reflexão social da convivência entre prisioneiros e suas histórias. Esse mangá nos leva a considerar que a prisão é um cenário interessante de ser explorado e visitado mais vezes. Existe histórias ali a serem exploradas, que vão além da violência e vilania. Nessa ecologia humana encontramos dramas e emoções em seres erráticos que podem nos servir para mostrar nossas imperfeições e que nossos erros têm limites e podemos pagar por eles, em um claro jogo de causa e efeitos. Dito isso me despeço por aqui e fica a dica, bom isolamento.
Renato de Medeiros Jota é Pesquisador em Quadrinhos.