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Proust e os pintores

Fundador de Navegos publica ensaio inédito, encontrado em meio aos seus papéis, após a publicação da primeira edição de O verniz dos mestres [84 p., Editora Feedback, Natal, 2020]

*Franklin Jorge

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Acreditava Proust que o escritor deve extrair da pintura e da música elementos capazes de enriquecer e ampliar sua escrita. Que teria muito a aprender com os processos de criação do pintor e do músico, o que ele próprio seguiu à risca em seu longo e estafante aprendizado e experimentos verbais que culminaram, por fim, com a concretude de sua obra considerada, por muitos, sobre-humana, por sua abrangência, grandeza e profundidade. Uma obra que faz dele um deus, como bem observou e exprimiu o presidente da Academia Sueca em discurso memorável que dimensiona sua glória.

Contemporâneo do Impressionismo, uma das últimas grandes escolas do modernismo visual, Proust cristaliza em sua obra agudas percepções da pintura e da música, como um círculo que se amplia até desvanecer-se em uma sólida estrutura que rivaliza com as catedrais góticas e dá solidez à sua obra feita a um tempo para durar e nos impressionar pela luz que dela emana e do ritmo que a permeia. Valendo-se, como diria, do conhecimento posterior que aprofunda e amplia.

Amigo e frequentador de músicos e pintores, usou seus poderes de observação para analisar processos de criação que pudessem servir aos seus próprios interesses e à composição de seu roman-fleuve. Neste aspecto, o Impressionismo, pictórico e musical, teve papel importante e […]* na elaboração de seu romance-rio que se desdobra e se amplia em círculos cada vez mais amplos e, como tal, aparentemente, imperceptíveis, semelhantes àqueles que provoca uma pedra jogada nas águas de um lago.

Ao escrever sobre a Vista de Delft, de Vermeer, detendo-se em breve e profundo escrutínio de uma “pequena mancha amarela” que sobreviveu às injúrias do tempo, parece celebrar a acuidade de suas percepções que transcendem a circunstância, ao demonstrar-nos que ao artista de talento, cônscio do que cria, basta um grão de areia para construir um mundo.

Essa pequena mancha amarela em um muro encanecido, considerada a mais bela pintura do mundo pelo autor de Em busca do tempo perdido, é uma importante chave do mecanismo criador de Proust, que viu “mais além”, ao contrário da maioria que, segundo o seu primo por afinidade, Henry Bergson, não sabe ver senão a superfície das coisas terrena das coisas.

Considerava Proust a arte superior à vida e, como tal, seria desnecessário copia-la, justificando assim sua ojeriza à Escola Naturalista. Portanto, descrevia o estilo como uma questão de técnica, não de visão, como o demonstra em sua percepção da Vista de Delft, a mais bela pintura do mundo.

Analista sagaz, familiarizado com o universo da pintura do seu tempo e do passado, capaz de penetrar nas camadas mais fundas da criação, tirou dos pintores, em especial, referencias e fundamentos para a sua própria criação. E viu pela primeira vez, em muitos casos, o que a outros passara despercebido.

Seu livro constitui, pois, uma vasta biblioteca que contempla com fluência e erudição todo o conhecimento humano. A rigor, dissimula uma coleção de ensaios sobre os mais diversos temas, do teatro à arte da maquiagem, passando pela arte suntuária, a poesia, a música, a literatura, as interrelações sociais, a arquitetura, a gastronomia, a escultura, a etimologia, a botânica e, obviamente, a pintura que ele considera fundamental à educação do escritor cônscio do que cria.

Jacques-Émile Blanche, pintor e escritor de talento, autor do mais conhecido retrato de Proust, pintado em 1892, assim o descreve, como o autor de uma obra que trabalha no silêncio e na escuridão, “porém transbordante de vida, diversa e única”. Juntos, Proust e Blanche, se dispuseram a unir seus talentos para escrever retratos de pintores seus contemporâneos,

Contemporâneo de grandes artistas, como Monet e a plêiade de Impressionistas musicais e pictóricos, foi um dos primeiros admiradores de Picasso, em 1919 confessou a Blanche que o espanhol, grande e admirável, soube concentrar todos os traços de [Jean] Cocteau “em um retrato de tão nobre rigidez  sempre que sempre que o contemplo até os mais maravilhosos Carpaccio de Veneza ficam relegados a um segundo plano em minha lembrança”.

[A Erasmo Costa Andrade]

*Rasura no manuscrito.

Em destaque, Marcel Proust em seu leito de morte [1922]; acima, retratado em [1892] por Jacque-Émile Blanche.