Honório de Medeiros
O combate à meritocracia é uma das pontas de lança do relativismo moral.
O relativismo moral apregoa que os valores são relativos, ou seja, o que é certo para mim, pode não ser certo para você; o que justo para você, pode não o ser para mim; e não há nada, absolutamente nada, que a ciência possa dizer quanto a essa questão que possa erradicar nossas diferenças.
Tirando a ciência – que descreve o que algo é e, quando o faz, revela algo que você somente não aceita se não tiver juízo, tal como a lei da gravidade ou a lei da entropia –, sobra a religião, ou até mesmo a arte, e assim seguem as tentativas de explicar a realidade que nos envolve.
Mas, quanto a isso, cada um tem a sua explicação, e acredita no que lhe der na telha, portanto. A conclusão possível, segundo esses parâmetros, é que a moral é relativa e, se assim o é, não existem valores absolutos aos quais devamos reverências definitivas e absolutas.
Se não existem valores absolutos, então não podemos falar em mérito, pois este pressupõe que sejamos capazes de avaliar os outros e reconhecer, neles, qualidades que mereçam respeito, elogio e, claro, confiança para lhes entregar, por exemplo, responsabilidades que não estão ao alcance dos que não foram avaliados com o mesmo reconhecimento.
Se não é possível reconhecer o mérito, então todos estamos no mesmo barco. Ninguém pode avaliar quem quer que seja e, dessa forma, a conclusão óbvia é que desapareceria a civilização como a conhecemos.
Voltemos ao ponto de partida. É válida a hipótese do relativismo moral, qual seja a de que todos os valores são relativos?
Outra possibilidade é a de que os valores existem, sim, e estão por aí, no espaço e no tempo, e o certo, o errado, o bem, o mal, o justo e o injusto existem por si mesmos, como entidades fora de nós, bastando que as encontremos onde estiverem e as colhamos, qual frutas maduras, e as utilizemos. Nesse caso, sinto dizer, essa hipótese não tem o menor fundamento.
É essa hipótese derivada da filosofia de Platão, melhor dizendo, de sua “Teoria das Formas e das Ideias”, que os relativistas morais criticam, e com razão, embora de forma oblíqua e, na grande maioria das vezes, sem conhecerem seu fundamento, seus pressupostos teóricos.
Isso porque os valores, tais quais imaginados por Platão, não são essências aguardando algum iluminado que as apreenda e as coloque a serviço da humanidade.
Não por outra razão, Jesus calou quando Pilatos Lhe perguntou: “o que é a verdade?”. Pilatos Lhe fizera uma pergunta de natureza ontológica. Provavelmente, era um cético quanto à moral, somente acreditava no Poder pelo Poder. Se sua pergunta dissesse respeito à fé, Jesus teria lhe respondido: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, e o Seu silêncio não perturbaria tanto os filósofos através do tempo.
Entretanto, ao compreendermos que os valores são construções do homem ao longo do seu processo civilizatório, estratagemas adaptativos, estratégias de sobrevivência, a questão muda completamente de perspectiva.
E a ciência nos dá razão porque, aqui, vamos estudar não o valor em si mesmo, mas as condutas que os criaram, sua finalidade, sua natureza. É o mundo da sociologia, uma ciência.
É científico conceber que em algum momento da história o Homem, a nossa espécie, teve um insight que lhe permitiu dar um passo à frente no processo evolutivo: descobriu a cooperação. Percebeu que podia até mesmo enfrentar seus predadores naturais e os vencer, caso cooperassem entre si. Percebeu, trocando em miúdos, que a união faz a força. Naquele momento nasceu o que hoje chamamos de “pacto social”.
O pacto social constrói e impõe direitos e deveres, ou seja, valores para que o grupo social, a sociedade, possa sobreviver, avançar. Tal ideia foi um “meme”, uma invenção do processo evolutivo, ou seja, uma construção humana, uma elaboração social, claro que sempre dependente de sua circunstância histórica.
Muito embora possamos rastrear a ideia de pacto social até Protágoras de Abdera bastando, para tanto, ler o diálogo platônico homônimo, é de se considerar que sua melhor descrição, de forma alegórica, está em “Leviatã”, de Thomas Hobbes.
Homo homini lupus, escreveu Hobbes, o primeiro dos grandes contratualistas. “O homem é o lobo do homem”, frase de Plauto em sua obra “Asinaria” – textualmente: Lupus est homo homini non homo, que expõe a causa-síntese, a constatação que impele o Homem a optar pelo pacto social. Em o assegurando, a sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular e fica, assim, assegurada a sobrevivência da espécie.
Caso não aconteça o pacto social, bellum omnium contra omnes, a guerra de todos contra todos até a autoaniquilação, no “Estado de Natureza”; É o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens, disse-nos, ainda, Hobbes, no final do século XVI e início do XVII – recuperando a noção de contrato social exposta claramente por Protágoras de Abdera, a se crer em Platão.
Essa noção de “pacto” ou “contrato social”, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III): “De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições, a lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, ‘uma garantia mútua de direitos’, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer”.
E muito embora um estudioso outsider do legado grego, tal qual I. F. Stone, defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas, relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.
Tudo isso significa que o conteúdo dos direitos e deveres pode variar no tempo e espaço, mas a noção da forma, do ambiente, do continente que os contêm, não. Ou seja, a ideia de pacto social é onipresente, muito embora seu conteúdo possa mudar ao sabor das circunstâncias históricas.
É por essa razão que certas condutas anteriores ao tempo atual eram consideradas erradas, e hoje já não o são. Quanto à regulação, à existência de normas, do ambiente que as contêm, de tal não se cogita: sempre existiram normas que regulassem a conduta humana. Repetindo: mudou o conteúdo, mas não mudou a forma.
Ainda: o que é certo e errado pode mudar no tempo e no espaço, ao sabor da volubilidade humana, mas a compreensão de que deve existir um conjunto de regras, mesmo que de forma difusa, que diga o que é certo e errado, em cada época, isso nunca mudou, por uma razão muito simples, tão bem apontada por Hobbes, qual seja a de que sem esse conjunto de regras a civilização deixa de existir.
Quando não temos um “norte” moral, jurídico, tudo vale; e se tudo vale, nada vale.
Então, embora seja relativo o conteúdo da norma moral, a necessidade da existência de regras de conduta e jurídicas é absoluta, um fenômeno sociológico, pelo menos no que diz respeito à realidade social conforme a conhecemos.
É preciso que entendamos que a construção do conteúdo da norma moral é sempre resultante do entrechoque de ideias, interesses, crenças, poder etc. entre aqueles que integram a sociedade. Mas ao contrário do que se supõe, o conflito social é fundamental para a elaboração da Constituição à qual nos apegamos para podermos sobreviver em sociedade.
Por fim, o discurso do relativismo moral é sabidamente ilógico. Argumentar contra os valores também é uma postura moral. Não há alternativa à existência dos valores. O que há é a possibilidade de aperfeiçoamento desse instrumento social. É isso que estamos tentando fazer desde aquele remoto momento no qual o Homem se deu conta de que a cooperação permite sua sobrevivência.
No final das contas, ninguém foge dos valores, seja contra ou a favor. Quem os critica, duvidando de sua existência, questionando sua eficácia, quer apenas mudar as regras do jogo para se beneficiar ou favorecer aquilo que defende.
Nada mais.
Honório de Medeiros, advogado, é mestre em direito de Estado pela UFCE.
FUNDADOR DA FILOSOFIA OCIDENTAL Cena do filme “Sócrates” (1971), do diretor italiano Roberto Rossellini, na qual o filósofo grego Sócrates (470 a.C.-333 a.C.), vivido por Jean Sylvère (em primeiro plano), dialoga com seu amigo rico Críton (Ricardo Palacios) na prisão, que lhe oferece a fuga, rejeitada por não acreditar que a injustiça deveria ser respondida com injustiça; ele fora condenado à morte por “corromper” a juventude, à qual pregava que, se ela acreditava em algo, era preciso verificar se aquilo realmente era verdade, e por questionar os valores e os deuses gregos