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Quem sabe ver não deixa barato

Numa manhã, em 2013, Franklin Jorge recebeu em seu escritório da Pinacoteca do Estado, fundada por ele em 1983, a inesperada visita de um artista icônico, Jordão. A conversa se transformou em capítulo de O spleen de Natal, volume 2, ainda inédito.

*Franklin Jorge

Numa rara manhã cinzenta e fresca, visitou-nos no Palácio Potengi um artista que se fez conhecido entre nós pela singularidade de seu talento impetuoso e caótico- dir-se-ia um talento visceral – para a criação escultórica e volumétrica. Um escultor que merecia ter suas obras dispersas no Parque das Dunas, um santuário de esculturas ao ar livre sob as copas das espécies sobreviventes da Mata Atlântica, ou no Parque da Cidade que não tem ainda uma alma.

Claro, era Jordão. Viera cumprimentar-nos ela direção da Pinacoteca o Estado e desejar-nos, aos que fazem parte desse grupo de trabalho, inspiração e êxito em nossos empreendimentos. Jordão, José Jordão Arimateia, 64 anos, um portento da natureza, todo percepção e sentidos alertas, embora deploravelmente cego; as cataratas deixaram-lhe somente 15 por cento da visão. Porém, apesar de tudo, não se queixa e ri do infortúnio, e também de todos aqueles que pensam que o cargo faz o homem.

Introduzido por uma funcionária, recebi-o nessa sala de trabalho. estava comigo o jornalista Paulo Sérgio Martins, que está se juntando à nossa reduzida equipe de formuladores de uma filosofia de trabalho para a Pinacoteca do Estado em sua terceira década. Vestia-se Jordão de maneira estilosa e elegante. Percebi que ele compusera sua toilete com esmero, conjugando com inteligência personalidade e sobriedade. Trajava, pois, um costume de corte militar numa discreta tonalidade de verde, turbante estampado, grandes óculos escuros que lhe cobriam parte do rosto, sombrinha violeta que deixou cair uma vez, e a bengala que serve de arrimo à sua avançada cegueira.

Nascido em Macau em 1949, segundo leio em sua carteira de identidade que ele tira do bolso e a entrega em minhas mãos. Anoto-lhe apenas a idade, que me surpreende. Como todo velho, pensava que fosse mais novo que eu. E Jordão me conta que veio menino para Natal, ele e o irmão que a pouco faleceu e que, ao lembra-lo como o seu melhor amigo e companheiro de longa irmandade – recentemente falecido -, ambos trazidos pela mão dessa corajosa mulher de Macau, mãe de duas crianças, cozinheira, em luta pela sobrevivência num lugar maior. E desde então, aqui, tem vivido todos em são parentesco; Jordão, com mulher, filhos e netos, confessa-se, francamente, um artista decepcionado. Como muitos outros artistas decepcionados que há em Natal. Aqui, reitera, as instituições fazem os artistas andar em círculos. A gente é obrigada a ouvir tanta, tanta palavra sem pensamento e a andar tanto, tanto, que chega a nos faltar dinheiro para o ônibus.É esta a situação da cultura em Natal, a capital do Estado do Rio Grande do Norte… Dá o que pensar… E o resto…? Natal é o cu do elefante potiguar. Como vemos, não há otimismo em Jordão, mas esse objetivo senso de realidade que dá realismo aos gemidos da população.

Jordão é um cidadão que gosta de lutar por seus direitos e vai buscar, onde estiver, o “ouro da cultura” – mesmo que dele só obtenha “uma babinha” -, sempre anunciado e nunca, jamais, presente em parte alguma, exceto nas falsas promessas de políticos “ficha suja”. Trata-se de uma luta sã que lhe dá animo e energia para viver sem vender a alma. Como dá para notar, não se trata de um artista alienado, vivendo no mundo da lua; que ouve mais do que fala, mas não perde as coordenadas e a noção da realidade. No momento, sabe que há o “ouro da Copa”, que deve beneficiar a cultura da cidade. Talvez seja a única boa da Copa, se for bem usado. Não é possível que com tanto dinheiro deixem este palácio cair…

Suas conclusões, como pensador e filósofo, são algumas inusitadas e outras, truísmos que há gerações acordam o povo para os fatos, tais como: “Nossos artistas não tem coragem de pesquisar”, afirma Jordão que diz ter muitos estilos para sobreviver às vicissitudes que achacam o artista em terra onde a cultura é explorada e deixada semimorta pela mesquinha política provinciana. E: “não há arte sem pesquisa e sem trabalho”; ou: “sucesso é curiosidade e animo”, e, para encerrar esta sentença, “tudo na vida anda, menos a Cultura em Natal”…  etc. Eis um pouco do Jordão que tenho conhecido e anotado em cada um de nossos encontros no curso da vida.

Para esse artista que desde os anos 70 nos surpreende com seu vigor imaginativo sugere-nos sua arte que vem de muito longe a existência de uma vida anterior que sobrenada na memória coletiva e nos faz partícipes de um mundo ainda envolto em brumas mitológicas, um mundo primitivo e recém criado, ainda habitado por Quimeras, mulheres-sereias e grifos que pascem em exuberantes florestas milenares surgidas de alturas marinhas e funduras celestes. Não há quem não se surpreenda diante da pujança imaginativa de Jordão, artista que dá forma à vida que anseia por exprimir-se.

Esculpe Jordão suas obsessões estéticas, fantasmagorias oníricas e fantásticas, como o monumental “Anjo Azul” que agora se encontra em pedaços numa praça do Conjunto Alagamar, em Ponta Negra, depois de ter encantado por dois ou três anos os transeuntes da Avenida Hermes da Fonseca, no bairro do Tirol, como chamariz de uma galeria de arte.

Jordão lembra que começou recebendo incentivos de uma senhora da sociedade, sua madrinha, Dona Lia de Holanda. Ele a recorda como uma boa mulher que nunca duvidou do seu talento e anteviu, para aquele menino que veio de Macau na companhia da mãe e do irmão, o reconhecimento por seu invulgar talento para a expressão artística. Interessou-se pelo destino daquele menino que tomou sob sua proteção. Depois, como acontece, explodiu o talento e nunca mais Jordão parou de criar, como agora, os relevos num muro da Câmara Municipal de Natal, geralmente tão feia por dentro, tem agora uma nesga de beleza para sobrepor à feiura moral histórica.

Ninguém faz monumentos em Natal, deplora Jordão, que não vê futuro algum para as artes numa terra que subestima os artistas e os trata como operários desprovidos de aspirações e desejos. Nenhum prefeito ou governador tem pensado em embelezar as praças e logradouros que estão se transformando em terra de ninguém, oficina e palco da delinquência juvenil. O povo aqui – observa – não tem a compreensão da arte. Não se empolga com a beleza. Tratam o artista com desprezo, como trataram a Newton Navarro e o enxotaram, até, em várias ocasiões de que fui testemunha, quando frequentava os bares. Ora, entender é o consolo do ego; e nem isso o povo, em sua alienação, entende… O natalense parece-lhe “um povo parado”, sem ação, incapaz de grandes atos, engessado pela inércia, esperando que o peixe caia em sua rede, e o maná, do céu. Características que não lhe auguram nenhum bem, reitera Jordão, em sua análise da ação dos sucessivos governos sobre a cultura que nunca há de melhorar, assim, desorientada e sem ganhos para o artista que é compelido “a ajudar” as instituições com o dispêndio e o suor do seu rosto.

Não há mercado de arte em Natal? Jordão faz a sua hora e o mercado que faltava para a arte. Contudo, crê que o artista precisa economizar-se e “não gastar seus estilos”, afinal “o povo não consegue pensar em duas coisas ao mesmo tempo”. E arremata seu discurso, girando a bengala, filosoficamente. Tudo o que se faz aqui é enganoso. Meu filho, aqui, tudo é falso. Os espertos abusam das palavras para criar a ilusão da coisa feita e assim vão falsificando tudo. Aqui até falsificam a feijoada, diz, com ênfase, Jordão, deplorando o que pagou para participar de uma feijoada em favor do carnaval, promovida por uma escola de samba. Se você vai a alguma dessas feijoadas que fazem para angariar recursos para a festa, logo percebe que as coisas são feitas para iludir, para ludibriar, para tirar vantagem além da conta. Afogam os feijões na água, na pressa e na ganância do lucro; servem-nos umas buchadas que não tem sabor, como se não tivéssemos paladar e o nosso dinheiro não valesse nada. Falta tempero em tudo, aqui em Natal; inclusive na Cultura, que não quer atuar