Rui Medeiros Fernandes
O rapto das donzelas é um fato social inclusive com repercussões jurídicas, pouco ou totalmente desconhecido, das novas gerações, que ocorreu desde a colonização do Brasil até décadas recentes do século XX.
A virgindade das mulheres solteiras, chamadas donzelas, era exigida como requisito para o casamento. Tal condição ocorria mediante impiedosa vigilância dos pais das moças, as quais, com qualquer idade, somente poderiam casar com o consentimento paternal.
Essa atitude da família era uma forma de evitar a iniciação sexual das moças, as quais deveriam se manter puras e virgens até o casamento.
Interessante é que, aos rapazes, não era feita igual exigência de virgindade, uma vez que imperava na sociedade da época um forte componente machista. Inclusive os rapazes eram incentivados pelos pais a se iniciarem sexualmente assim que completassem a maioridade, como forma de se assegurarem da virilidade dos varões. Essa iniciação geralmente era feita nos cabarés da cidade. Um amigo mais velho me confidenciou que o pai dele chegou a procurar a dona de um cabaré de Caicó, a quem contratou para atrair seu filho e entregá-lo aos cuidados de uma das “meninas” inquilinas da pensão, para que realizasse o “serviço sexual” no rapaz, que era muito tímido.
Esse contexto talvez explique por que, apesar da vigilância cerrada dos pais às donzelas, ocorriam alguns raptos que agitavam as famílias das pacatas cidades do interior do País, especialmente da então pequenina cidade de Caicó. Eu mesmo tomei conhecimento de um rapto ocorrido em minha família, nos idos de 1945, quando um apaixonado rapaz chamado José Pergentino ousou raptar minha irmã Severina, filha de Simão Leleco, levando-a na garupa de um cavalo para lugar que só veio a ser conhecido dois dias depois da fuga da donzela, porque a pretensão de casamento dos jovens não era do agrado de meu pai naquele momento. Consumado o rapto, não houve outra alternativa: o valente Simão Leleco concordou com o casamento, que foi bem sucedido porque durou quarenta e dois anos, encerrado em decorrência da morte de minha irmã em 1987.
O rapto era um crime previsto no Código Penal de 1940, tipificado nos artigos 219 a 222, adiante transcritos:
“CAPÍTULO III (do Título VI)
DO RAPTO
Rapto violento ou mediante fraude
Art. 219. Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso:
Pena – reclusão, de dois a quatro anos.
Rapto consensual
Art. 220. Se a raptada é maior de quatorze anos e menor de vinte e um, e o rapto se dá com seu consentimento:
Pena – detenção, de um a três anos.
Diminuição de pena
Art. 221. É diminuída de um terço a pena, se o rapto é para fim de casamento, e de metade, se o agente, sem ter praticado com a vítima qualquer ato libidinoso, a restitui à liberdade ou a coloca em lugar seguro, à disposição da família.
Concurso de rapto e outro crime
Art. 222. Se o agente, ao efetuar o rapto, ou em seguida a este, pratica outro crime contra a raptada, aplicam-se cumulativamente a pena correspondente ao rapto e a cominada ao outro crime.”
Importante registrar, ainda, que o art. 107 do Código Penal, que estabelece as causas de extinção da punibilidade (que é a possibilidade jurídica de o Estado impor a sanção), previa à época, em seus incisos VII e VIII, as hipóteses de extinção da punibilidade, quanto ao crime de rapto e outros crimes contra os costumes, em caso de casamento da vítima com o agente (autor da conduta criminosa) ou de casamento da vítima com terceiro.
*** OBS: os arts. 219 a 222 foram todos revogados pela Lei 11.106/2005, operando-se, em relação a eles, a chamada abolitio criminis, assim como também foram revogados pela mesma lei os incisos VII e VIII do art. 107, com a finalidade de melhor adequar a lei à realidade social.
Peço desculpas ao leitor pela linguagem técnica, também chamada de “juridiquês”, mas achei necessário enfatizar as repercussões jurídicas desse fenômeno sócio-cultural.
Volto à descrição de modus operandi do rapto, tal qual ocorreu com minha irmã: em virtude de os pais da noiva não consentirem com o casamento com o noivo escolhido por ela (não vou destacar os motivos, que agora são irrelevantes) o noivo raptou a noiva (que residia na fazenda de nosso pai), com o consentimento dela, conduzindo-a na garupa de um cavalo e a levando até outra fazenda, onde a entregou aos cuidados de um casal amigo de nosso pai, para assegurar que ela estava protegida em sua integridade física. Na hipótese, o que estava sendo protegido era a virgindade da moça.
Destaca-se que, no trajeto da casa da noiva até a casa onde ela foi albergada, os noivos foram acompanhados por outro casal, para evitar a tentação dos jovens em antecipar a lua de mel.
Estando a noiva acolhida em lugar seguro e de respeito, o casal acolhedor dirigiu-se à casa dos pais da noiva para comunicar o fato. Com a saída da noiva da casa dos pais, não teve outra solução, senão a adoção de todas as providências para a efetivação do casamento.
Uma situação que hoje causaria espanto e que era comum na época dos raptos das donzelas: acaso a noiva desistisse do casamento e desejasse retornar ao lar paterno, seria recusada pelos pais, que não aceitariam a devolução da filha porque ficaria manchada sua reputação, passando a ostentar o rótulo de “moça falada”.
Em época mais recente, na década de 1970, quando transcorreu minha juventude, assisti, muitas vezes, casais de namorados fugirem de festas com fito de apressar o casamento não programado, com o retorno da moça à casa dos pais somente no dia seguinte. Ocorre que, nessa época mais moderna, os noivos não permitiam a companhia de ninguém e davam início à precoce lua de mel, no primeiro lugar e instante em que se encontrassem sozinhos. A maioria desses casamentos foi bem sucedida e alguns desses casais estão atualmente na curtição dos netos.
Rui Medeiros Fernandes, advogado da Advocacia Geral da União (AGU), dentista e escritor