*Camila Jales Fernandes
“No alto das luzes mortas, brilhando com o alvorecer e a penumbra fantasma, um sorriso estampava as feições de Cubas. Das Negativas às Conquistas”
.Acordo com a estranha sensação de que está fora a última vez. De que meu coração devia estar latejando nos meus ouvidos, mas apenas um som oco me atinge. De que minha cabeça devia estar acompanhando meu coração, e então percebo que ela está, só não do jeito que eu imaginei.
Não vejo nada, e um rompante de medo percorre-me ao perceber que talvez meus olhos não estejam onde deveriam estar. Com um leve toque, certifico-me do contrário. Onde estou? Sei que morri, então estou em uma espécie de purgatório? Onde está o tribunal? Por que não o Céu? O inferno seria mais quente, certo?
Não sei onde estou, não faço ideia. Até… Um clarão me atinge de súbito, e se eu não tinha certeza que não tenho olho, agora tenho. Não acredito no que estou vendo, até porque achei que não tinha olhos até um tempo atrás. Estreitando-os, deparo-me com três figuras me encarando. Na verdade, apenas vejo seus olhos. Já estou cansado de tantos olhos. Mesmo assim, reconheço-os. Reconheço-os e tenho a sensação de que devia ter desmaiado, mas, de novo, acontece exatamente o oposto. Eles fitam-me e eu os encaro. E, pouco a pouco, formam-se em Quincas Borba, Dona Plácida e, para a minha surpresa – que veio antes da sua, leitor -, Virgília. O problema é que, se eu estou morto e vendo outros mortos, significa que Virgília também está morta, mas… Quando? Por quê? Como? Onde? Tanto tempo que não a vejo e nosso reencontro é no mundo dos mortos. Que bela peça o destino nos pregou, formaria uma história interessante se já não estivéssemos em uma. Talvez eu faça um poema sobre esse inoportuno reencontro, se isso existir por aqui.
-Virgília?- Chamo-a, na espera de um retorno.
– Oi, Brás, quanto tempo.
Procuro por mais alguém, mas nenhum outro vislumbre de morto encontro. E, por um momento, isso me enche de esperanças. Já estou morto mesmo.
-Onde está Lobo Neve, Virgília?
Ela esboça um sorriso tímido.
– Ele não está aqui, ainda está vivo.
Não perco tempo, corro até ela e lhe dou um beijo bastante demorado, então:
– O que aconteceu? Você… você está morta! Mas como? Pergunto, sendo acompanhado por uma expressão que recebo como se ela estivesse falando – Como você acha? Eu morri!, mas, então, ela me presenteia de novo com um sorriso e me beija.
Estou tão feliz. Eu estou morto, ela está morta, mesmo assim, nunca me senti tão vivo. Lobo Neves ainda está vivo, aqui embaixo não há regras, não há normas a seguir. Eu posso ficar com ela, posso anunciar isso para todos os cadáveres deste cemitério. Quem diria que as peças do destino não são tão ruins assim. Está decidido, não importa se eu não sei fazer ou se neste mundo não exista esse tipo de coisa. Com certeza, criarei um poema sobre este não mais inoportuno reencontro.
E então, como o medo que me ocorreu alguns instantes antes, sinto um arrepio subir pela coluna e faço uma careta.
– Não se preocupe! – Quincas Borba diz, me dando um susto. Já tinha me esquecido de sua presença – São calafrios póstumos, com o tempo passa.
– Você tem nome para tudo? Pergunto sorrindo.
– Claro que não, apenas para os mais legais. Você se acostuma.
Ele responde com uma piscadela. Piscadela? O que é uma piscadela?
– Virgília, como morreste?
– Não aguentei, Brás, vivi minha vida toda ao lado de outro homem e… e quando você morreu… simplesmente não podia mais viver…
Autocondeno-me por sentir felicidade pela morte da mulher que amo. Mas não consigo conter um sorriso.
– A gente poderia se casar. Proponho.
– Brás…
– Não há nada que nos detenha, nada que nos impeça.
E, então, pela primeira vez neste nosso não mais inoportuno reencontro, Dona Plácida fala:
– As coisas aqui são diferentes, não precisam anunciar para uma igreja e oficializar a união. Podem apenas ficar juntos, se é de suas vontades.
Outro calafrio póstumo me surpreende sob a visão de Virgília negar – tomara que eles acabem logo.
Mas passa, à fala de Virgília:
– Poderíamos ter filhos. – Ela fala com um sorriso de dama recatada, seus olhos brilhando com essa ideia.
Assinto com a cabeça e, pela primeira vez na vida não mais vivida, me sinto corar.
– Claro. Respondo
– Mas nós estamos mortos, como poderíamos ter filhos? Esta pergunta o autor responde. Sendo o que for, não ligo, vou criar minha vida com Virgília.
« Esta história é feita por minha vontade, eu mando, eu proclamo, o que eu quiser que seja será e, se você não gostar, que seja, se eu digo que pode acontecer, acontecerá. «
E aconteceu.
Não sei o que ele falou, mas se concretizou. Posso não ter realizado meu emplastro, mas não quero. Aquela criação traidora. Construía um remédio para curar todas as doenças e acabei morrendo de um enfermo, enfim, a hipocrisia.
Aqui neste lado, a política não mais me atrai.
Então, sigo feliz com Virgília e nossos três filhos e uma menina: Anthony, Ricardo, Alexandre e Calia.
E só o que eu consigo pensar é no quão inusitada foi a forma na qual ganhei a vida não mais vivida, sentado em uma colina, de lado de minha esposa, observando meus filhos brincarem, no mundo dos mortos.
No alto das luzes mortas, brilhando com o alvorecer e a penumbra fantasma, um sorriso estampava as feições de Cubas. Das Negativas às Conquistas.
– Virgília, minha querida, tenho algo para você.
Encarando-a com um sorriso, que foi retribuído, começo:
Que poética, a minha história!
Nunca pensei que depois de morto
encontraria minha glória.
Realizações de vida
Cumpridas quando morto,
E sob um olhar
Que, para meu mundo,
Via-se como torto.
Uma história iniciada com falhas
E que não terminou em uma fornalha.
Já que não estou no inferno,
Nem no céu,
Estou em algum lugar fraterno.
