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Recanto boêmio

Escritor acreano-potiguar passeia pela cidade e faz a cartografia afetiva de Natal.

*José Stélio de Castro

Cada um tem sua noção de paraíso.

Todos buscamos, amiúde, a alegria.

A filosofia ensina que o homem, individualmente, é um buscador. E busca, essencialmente, a felicidade. Creio que o axioma seja verdadeiro. Até porque jamais conheci alguém que, tenazmente, se ponha a perseguir, como objetivo de vida, um estado de plena infelicidade. Não creio nesta possibilidade negativa. O oposto é mais plausível, pois, gratificante. E faz melhor sentido.

A opção que fazemos vem da noção que temos.

Viver a vida com alegria é mais racional.

Como sou dado aos vícios, a boemia é uma alternativa. Traz tranquilidade à alma e ausência das perturbações da mente. Isso, enquanto afogamo-nos na cachaça e na música, que nos faz olhar as mulheres com volúpia e pensar no fulgor dos lábios nas madrugadas frias, próprias para o aconchego humano. Ainda jovem fiz essa escolha. Com muita poesia.

E não me arrependo.

Hoje alterno boemia e espiritualidade: há dias em que bebo, há dias em que medito; há dias em que sou o barulho do bar e há dias em que sou o silêncio da solitude, quando contemplo o mar. Antes, porém, a noite era o meu templo, a poesia o meu sustento e a mulher o meu intento. Era, enfim, um boêmio que cultuava a prática, mesmo às segundas-feiras. Por isso, quando adentrei a Praia do Meio – há décadas – senti encontrar meu paraíso. E isto tinha sua razão de ser.

Era a praia mais boêmia da Cidade do Natal.

Os bares da praia abundavam desde os anos sessenta e setenta. A noite podia até ter início noutro lugar, mas findava na Praia do Meio. Nem vou falar aqui dos recantos da Ponta do Morcego, que cito em crônica posterior. Mas, apenas nomearei alguns outros, por si só, emblemáticos e representativos de uma época de ouro e nela muitas gerações se espraiaram.

Esse é o caso do Postinho.

Tratava-se do anexo do posto de combustível da praia. Um bar histórico, sem dúvida, pois reunia intelectuais, poetas e boêmios de todas as estirpes. Lenine Pinto e Newton Navarro, entre eles. Outro ponto significativo da boemia da Praia do Meio: a Tenda do Cigano, por trás do Hotel Reis Magos, com seus caldos especiais, como o famoso caldo à cavala. Esse, com certeza, deixou saudade em muita gente.

Ali, a noite parecia terminar.

Mas, no Castanhola, era a começar.

Esse bar – que devia seu nome à árvore que tinha em seus domínios – permitia aos fregueses uma boa visão das bundas que se expunham na praia, devido ao andar superior onde ficavam as mesas. Um visual privilegiado, sem dúvida. Artistas gostavam de frequentar o local. E a cerveja “era no grau”.

E a Barraca do Berg?

Ficava ali perto do Poço do Dentão, onde Abimael mergulhava quando menino, e vizinha à imagem de Iemanjá. Berg, na verdade, é o escritor Gutenberg Costa, que sabe tudo sobre bares e restaurantes de Natal. Seu bar foi bem frequentado nos finais de semana. E marcou época pelo ambiente saudável e atrativo. E seu grande arco de amizades. Não ganhou dinheiro, é verdade.

Mas poucos ganham.

Esse é o caso da Casa da Música ou Casa da MPB. Enquanto durou, o empreendimento faturou. O ambiente era sempre cheio de gente que se imprensava nos espetáculos musicais, alguns com artistas de expressão nacional. O espaço fora sede de um clube de futebol local. Apesar de fechado há décadas, ainda resiste na memória de muitos. Nesse ramo, aliás, sobrou a Casa do Matuto, firme até hoje.

Sim, a praia foi um grande reduto boêmio.

A cidade, literalmente, descia a Ladeira do Sol.

Tanto que a geração dos que passaram dos cinquenta ou sessenta anos lembra, com facilidade, de ambientes como o Carinhoso, Chorão, Panelão, Beco da Glória, Beliskão, Chambaril, Jangadeiro, Caravelas, Arte e Manha, Saravá, Reizinho, Ka Ti Kero,  Boêmio, Maresia e Estação Trem de Minas, que cheguei a frequentar pela boa comida. E pela música e gente bonita.

Hoje a coisa mudou.

Os bares sumiram.

Para se ter uma ideia, nos dias de agora, nós temos apenas um: o Bali Bar, encostado ao posto. Os quiosques do calçadão são poucos atrativos. A maioria fecha à noite. A culinária de ponta não existe mais, salvo nos tradicionais Farol Bar e Cais 43, além da Peixada da Comadre e Peixada O Velho Chorão, que resistem, heroicamente.

Beber na praia hoje exige paciência.

Estou falando de bebericar com arte e harmonia, como outrora, quando os amantes etílicos tinham espírito de artista e educação pacífica, qual árvores frutificando amizades. O recanto da boemia, acreditem, carece de novos e bons bares, que sejam verdadeiros templos de devoção à alegria. E de novos boêmios. Desde que, claro, dotados com as almas dos velhos e românticos notívagos.

Um brinde, pois, à Praia do Meio.

E aos corações embriagados de amor!

Antonio Stélio – Escritor e jornalista.

Iemanjá, cartão postal da Praia do Meio.