*Alexsandro Alves
Um deleite a qual todo melômano se dedica, sobretudo quando é um amante da ópera, é comparar cantores. É quase uma religião, uma religião hedonista: há as divas e também, os divos. E cada amante desse gênero tem os seus prediletos e dia após dia enfeita seus altares com a alegria de sua devoção.
Eu, em se tratando de ópera, coloco em primeiro lugar Wolfgang Windgassen, Birgit Nilsson, Waltraud Meier, Dame Gwyneth Jones, mas esses são wagnerianos. Eu quero falar sobre a ópera italiana.
Nesse quesito, nomes como Giuseppe di Stafanno, Maria Callas, Renata Tebaldi, Franco Corelli, Mario del Monaco, reinam absolutos nas gravações dos anos 50, 60 e 70. Nos anos 80 reinaram supremos, em termos de tenor de ópera italiana, três nomes: Luciano Pavarotti, Plácido Domingo e Jose Carreras; embora este último, por conta da leucemia, teve sua carreira encurtada. Pavarotti e Carreras são tenores líricos, enquanto que Domingo é um tenor lírico spinto, ou seja, tem uma potência de voz mais poderosa do que os outros dois.
Estava, essa semana que passou, escutando a ária Recondita armonia, da ópera Tosca, de Puccini. Nessa ária, o personagem Mario Cavaradossi, um pintor, declara seu amor para Floria Tosca, enquanto pinta uma santa com expressões de outra mulher, ele é interrompido sempre pelo sacristão, que se escandaliza com a pintura do artista: Fuori, Satana, Fuori! Scherza coi fanti e lascia stare i santi… (Fora, Satanás, fora! Brinque com os soldados e deixe os santos em paz…).
A letra é:
Recondita armonia Secreta harmonia
di bellezze diverse! È bruna Floria, de beleza diversa! É morena Floria
l’ardente amante mia… a ardente amante minha!
E te, beltade ignota… E tu, beleza desconhecida…
cinta di chiome bionde, de cabelos loiros,
tu azzurro hai l’occhio, teus olhos são azuis,
Tosca ha l’occhio nero! Tosca tem olhos negros!
L’arte nel suo mistero A arte em seu mistério
le diverse bellezze insiem confonde; harmoniza belezas contrárias
ma nel ritrar costei, il mio solo pensiero, Tosca, sei tu! mas ao te pintar, meu pensamento, Tosca, é teu!
Cada um dos três cantores supracitados dão um testemunho diferente dessa ária.
Com Pavarotti temos, talvez, a interpretação ideal. Eu imagino que as árias para tenor de Puccini se harmonizam perfeitamente com a voz dele, mesmo que Puccini tenha escrito algumas para tenor dramático. O tom de Pavarotti, leve e brilhante, revela aquela grandeza melódica que fez de Puccini o mais importante operista italiano do século XX; é uma musicalidade radiante. Nosso ouvido parece que sonha com as notas, como se elas se fizessem corpóreas. As notas mais rápidas de “L’arte nel suo mistero le diverse bellezze insiem confonde;”, Pavarotti executa com destreza e limpidez. Nos voos de “E te, beltade ignota… cinta di chiome bionde,” e “ma nel ritrar costei, il mio solo pensiero, Tosca, sei tu!”, a voz de Pavarotti aconchega nossos olhos, que se fecham num voo lírico de grande prazer.
O espanhol Plácido Domingo, com sua extensão vocal mais ampla, nos coloca em situação auditiva diferente. A enunciação dele é mais lenta e pausada do que a de Pavarotti, em momentos como “L’arte nel suo misterole diverse bellezze insiem confonde;”, que Pavarotti executa com destreza, Domingo é mais tranquilo; o ataque de Domingo em “E te, beltade ignota… cinta di chiome bionde”, preciso, porém não arranca aquele voo que os nossos ouvidos pedem e que Pavarotti garante; Domingo, sem deixar de ser passional, é mais calculista nos inícios e controla a linha sem se entregar ao devaneio, como aquela impressão que temos com Pavarotti, que parece que é instintiva ou natural no italiano. Além disso, a voz de Domingo, por vezes baritonal e heroica, reveste a ária de um brilho diferente do de Pavarotti: neste, há um brilho cristalino, naquele, há um brilho metálico.
Carreras desenha seu canto com um caráter silábico mais preciso do que os outros dois, sobretudo em comparação com Pavarotti, que parece abandonar qualquer sentido literário para a palavra cantada, é música pela música; há em sua voz um brilho de cristal, e sinuoso, que chega aos ouvidos como ondas sucessivas. Carreras é o mais incontido dos três, sua linha em “ma nel ritrar costei, il mio solo pensiero, Tosca, sei tu!”, é sem dúvida de um homem carnalmente apaixonado, as notas avançam como abraços desejados – Carreras voa, mas seu voo não é um sonho etéreo, é a lembrança vívida e quente de corpos que se abraçam. Este caráter erótico também está presente em Domingo, porém sua voz mais heroica coloca a ária em outro patamar.
Abaixo, três vídeos com os três tenores executando a ária.