*Francisco Alexsandro Soares Alves
A novela Fera Ferida de Aguinaldo Silva (1943) estreou na Rede Globo em 15 de novembro de 1993 e permaneceu no ar até 16 de julho de 1994. Quando ela estreou eu tinha 18 anos e havia descoberto a música e as concepções estéticas de Richard Wagner (1813-1883) aos 15 anos, porém apenas aos 17 eu escutaria uma composição wagneriana. Nesse período eu estava ainda descobrindo esse universo em si mesmo dentro do todo maior da Arte quando me deparo com uma notícia na Tribuna do Norte sobre a nova novela do horário nobre da emissora, Fera Ferida. Na reportagem dizia que a novela teria fortes influências da cultura alemã e, desde que Wagner fundou seu Festival de Bayreuth em 13 de agosto de 1876, o que se seguiu uma apropriação indevida pelo III Reich, pensar a cultura alemã é pensar na influência do Mestre de Bayreuth sobre a vida cultural e política daquela nação.
Como tudo que tem influência nobre é revestido de uma aura especial, esta novela soava diferente de todas as outras. Nunca me interessei em acompanhar esta forma de entretenimento porque não havia nada além do comum nas mesmas, antes de Fera Ferida, apenas algumas exceções posso citar que me atraíram por motivos diversos: Vale Tudo (1988), Bebê a bordo (1988), e Que rei sou eu? (1989).
Minha adoração juvenil pelo autor de Tristão e Isolda (1865) me convencia a acompanhar algo que não fazia parte de minhas preocupações naquela época, comas raras exceções supracitadas. Paralelamente a Wagner, a novela se basearia, sobretudo aliás, na obra de Lima Barreto (1881-1922), autor que naquele ano havia descoberto. A trama da novela entrelaçaria personagens, tramas e situações retiradas de seus romances: Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), Clara dos Anjos (1948), e de seus contos A Nova Califórnia (1910) e O homem que sabia javanês (1911). A história da novela gira em torno da busca pelo ouro na cidade de Tubiacanga (RJ), e esse assunto é retirado do conto A Nova Califórnia, a partir desse plot, são apresentados muitos personagens oriundos da criatividade de Lima Barreto. O próprio escritor aparece na figura do poeta bêbado Afonso Henriques, que são os nome e prenome de Lima Barreto: Afonso Henriques de Lima Barreto. Como leitor amante da obra de Lima Barreto, minha experiência juvenil com essa novela foi de uma admiração extasiante, porque ver Raimundo Flamel, Clara dos Anjos, Numa, Tenente (na novela major) Bentes e tantos outros que, mesmo modificados para se adequarem à linguagem da teledramaturgia, ressoou em minha alma com um quê de encanto e permaneceu assim durante décadas. Mesmo porque as interpretações eram muito dramáticas, algumas até exageradas, mas os exageros também tinham algo da ópera.
Como é lamentável que a maioria dos brasileiros que assistiram à novela não tenham tido essa experiência de deslumbramento, essa sensação de reconhecer personagens e tramas, essa comunhão maior, digamos. É claro que a novela, pela própria linguagem da mesma, não poderia ir muito a fundo nas questões que Lima Barreto trata em seus livros: racismo, ufanismo, patriotismo, crítica a uma elite muitas vezes pedante, questões que esbarram, do ponto de vista sociológico, como formadoras de nossa nação, para o bem ou para o mal. Triste fim deste país em que o povo se mantém aquém da única herança que pode mudar as estruturas do Brasil: a nossa cultura. Os nossos mestres brasileiros.
Um outro nível de leitura dessa novela passa pela influência alemã. Basicamente pela música alemã de Weber (1786-1826) e de Wagner. Weber é periférico, se resumindo ao sobrenome do esposo da Dona Margarida, tia de Flamel, Dona Margarida Weber. O casal tem duas filhas, Siegfrieda e Isolda, que são personagens de dramas musicais de Wagner, O anel dos nibelungos (1876) e Tristão e Isolda, respectivamente. Sendo que no caso de Siegfrieda, o gênero está trocado. A história de Siegfrieda espelha, por sua vez, a de Elsa, personagem de Lohengrin (1850). Nesse núcleo da novela, em vários capítulos, ocorre audições de obras de Wagner, notadamente A valquíria (1870) e Tristão e Isolda e, em um capítulo, Dona Margarida escuta Crepúsculo dos deuses (1876). Várias falas de Flamel são retiradas de libretos de Wagner, notadamente Tristão e Isolda e O holandês errante (também conhecida como O holandês voador ou O navio fantasma, 1843). A música de Wagner gera situações dramáticas, como a vez em que Flamel decide explodir Tubiacanga e declama sua fala ao som do final de Crepúsculo dos deuses, porém também geram situações cômicas, como quando, em um capítulo, Flamel está pensando em Linda Inês ao som do Prelúdio de Tristão e Isolda, então entra a empregada aos gritos, “Patrão que barulheira fúnebre é essa? Quem morreu? Escute outra coisa, patrão!” A música wagneriana também é ouvida de outra forma. Uma das canções que caracterizam Dona Margarida Weber, Corpo e Luz (“Mulher quem tem vida sofrida…”), interpretada por Ithamara Koorax (1965), é uma releitura de uma cena de Tristão e Isolda. Recordo que quando tocava esse tema olhava para todos em casa e viam que gostavam, mas quando eu escutava Tristão, não gostavam…
No entanto, o que de mais havia de Wagner na novela era a passagem de tempo. E isso era o que mais me prendia. Um drama musical de Wagner possui quase sempre um andamento lento, os arcos melódicos wagnerianos são imensos, muitas vezes se fechando apenas no término do ato. Isso gera uma noção temporal em câmera lenta e aliado à técnica do leimotiv, uma noção de tempo psicanalítica, mas isso é para outro artigo.
Em Fera Ferida os dias se passavam de forma incomumente lenta para uma novela. Geralmente em obras de TV a ação pode iniciar durante uma manhã e no fim do capítulo estarmos já à noite ou até em outro dia. A partir do segundo capítulo da novela, porque o primeiro capítulo é formado por flashbacks de Flamel de 15 anos atrás, em Tubiacanga o dia demorava até uma semana para terminar.