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Redinha dos quintais pobres

Fundador de Navegos escreve sobre a praia da Redinha, antiga aldeia de pescadores e lugar de veraneios inesquecíveis, onde teve casa por 15 anos, onde escreveu grande parte de seus livros ainda inéditos.

*Franklin Jorge

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Quando cheguei aqui, a Redinha era diferente, afirma Geraldo Preto, no lugar desde o ano de 1952. Havia mais cajueiros e matos. O verde era variado. As casas, distantes umas das outras. Lembrava mais uma concentração de sítios do que uma aldeia de pescadores… Os veranistas eram raros. Apenas uma ou outra família de Natal atravessava o rio e vinha curtir o verão nessa praia que está caminhando para se tornar um bairro. O que havia muito aqui eram os ventos… Em agosto então! Nem queira saber quanta ventania varrendo essas praias.

No princípio, os nativos da coleta de frutos e da pescaria. Os primeiros veranistas costumavam alardear que na Redinha comia-se o melhores pescados e as frutas, colhidas nos morros e nos quintais pobres, eram sempre frescas e sumarentas e odorosas. A água de coco era doce e salubre. A Redinha era gostosa, lembra Dona Dalila, nascida em Contendas, acima da Barra do Rio, ainda atualmente uma aldeia primitiva. Seu marido, Geraldo Preto, é do Ceará-Mirim, Mas, aqui, encontrei o meu porto, intervém.

Menina, Dalila escalava os morros para apanhar frutas silvestres, entre as quais o camboim, guajirus, araçás e “minha tia”, uma frutinha preta, gostosa, bem pixototinha, que ela e outras crianças saboreavam aos bocados, gulosamente. São frutas que se extinguiram e hoje a gente não encontra mais nem uma nem pra remédio. Até as mangabas estão desaparecendo dos morros e já não há mais tantos cajueiros e coqueiros, como antigamente. Um pé de fruta-pão hoje é a coisa mais rara de se encontrar num dos nossos quintais. Quando eu era menina, não havia quintal sem um pé de fruta-pão, que como o nome já diz,era o pão dos pobres…

No pé do morro eu ainda alcancei uma lagoa bonita, de águas claras, que dava gosto olhar. Em derredor, não dava para contar os pés de mangabeiras e cajueiros que, quando floridos, enchiam o ar de um aroma capaz de embriagar os nossos sentidos. Havia também toda qualidade de pássaros que desapareceram. Hoje, até as gaivotas são raras por aqui…

O Mercado, uma rústica construção coberta de palhas de coqueiro, e o Trapiche ou embarcadouro, como alguns costumavam chamá-lo, eram pontos de convergência e confraternização. Não havia parteiras na Redinha e as mulheres que iam parir, atravessavam o rio de canoa para Natal ou mandavam buscá-las, dependendo do gosto e das posses de cada uma delas. Uma vez, eu me lembro como se fosse hoje, uma dessas mulheres estava tão prenha que pariu ali mesmo, no Trapiche, enquanto esperava a canoa… Foi uma coisa que por muito tempo deu motivo para muita conversa e falatório aqui na Redinha. Os botes a vela funcionavam diariamente até as dezenove horas, transportando passageiros e cargas. Todos eles tinham um nome.

Na Redinha o dia começava de madrugada com o café aromático, torrado e pilado em casa, tomado no Mercado, ao pé do balcão ou em mesas colocadas diante dos locais. O chão era de areia batida, rescendia a álcool, pois as pessoas tinham o costume de derramar um pouco de bebida, numa libação arcaica ao calor e às entidades do mundo invisível. Por toda a parte, caçuás e mais apinhados de peixes, alguns ainda vivos e estrebuchantes. Cordas e mais cordas apinhadas de caranguejos relutantes. Frutas sumarentas, acomodadas dentro de cestos forrados de folhas de bananeira ou de fruta-pão, exalavam o seu perfume agridoce.

Este é o terceiro Mercado, construído em alvenaria. Os outros foram tragados pelas águas. Já não abre, como os de antigamente, às duas horas da madrugada para receber o peixe que vinha em lombos de mulas de paragens distantes, entre as quais, Maracajaú, Barra do Rio e Muriú. Mas, ainda persiste o apetite dos fregueses por tapiocas, peixe frito no dendê, munguzá, café e batata-doce. Aqui, arremata num alegro tristíssimo Geraldo Preto, não faltavam movimento nem peixe…

As águas deste rio eram muito piscosas, mas agora, recebendo os dejetos de Natal, não produz mais quase nada, a não ser dermatites. Mesmo assim, especialmente em fins de semana e feriados, ainda atraem numerosos banhistas. Especialmente os farofeiros da Zona Norte, famílias inteiras que vêm desopilar o estresse do dia a dia.

A Festa da Padroeira da vila, Nossa Senhora dos Navegantes. Uma festa linda, quando não havia luz elétrica, mas a noite fica clara, claríssima, iluminada pela luz das piracas, relembra Dalila, fritando uma posta de peixe em azeite de dendê para o freguês apressado que mata a sede com uma cerveja bem gelada.

Janjão, João Feitosa de Oliveira, morador da Redinha derna o ano de 1939, desmancha-se em minúcias ao evocar o mês de dezembro com as chamadas chuvas de caju, inconstantes e breve. Mês dos Pastoris, das Cheganças, dos Bois-de-Reis, dos Fandangos, dos Côcos, dos Bambelôs, dos Congôs, que ele chama de “brincadeiras”, antecipavam a festa religiosa que culminava com a procissão aquática.

Barcos e canoas engalanados para saudar e reverenciar a Santa protetora. Joaquim Caldas Moreira comandava a festa. Depois o prefeito Djalma Maranhão tomou conta e a festa passou a ser coisa de políticos. Janjão enumera os botes pertencentes ao finado Brasiliano, José Brasiliano, que homenageava os poetas da terra inscrevendo seus nomes na proa. Palmyra, Itajubá, Segundo Wanderley…

Cidadão, palavra que em sua boca adquire um tom distinto, vinha muita gente para essa festa. A animação era a maior. Os botes passavam a noite transportando os devotos e aqueles que queriam apenas confraternizar e se divertir. Joaquim de Dona começou com os primeiros botes, que aos poucos foram substituindo as canoas, o meio mais antigo de transporte desse povo da Redinha.

Hoje, sobrou apenas a procissão. Os folguedos populares queridos por todos foram substituídos por esses parques de diversão que ainda se instalam na praia, em frente ao Mercado, com a sua roda-gigante, seus balanços, seu circo-de-cavalinhos.

Um homem gordo, de óculos, se aproxima, atraído pelo conversê. Cumprimenta-me especialmente e ali fica parado, de pé, ao lado do balcão, escutando; vez ou outra faz menção de intervir, mas Janjão, vaidoso e altissonante, não quer dividir com ninguém os seus cinco minutos de fama. Sorri, os olhos distorcidos pelas grossas lentes. Finalmente, pergunto-lhe a graça que recebeu no batismo, Benedito. Benedito de Brito, apresenta-se. Ex-zelador do Redinha Clube, entende que tem um depoimento a dar sobre a terra onde vive. Vim correndo de casa, quando soube que tinha um jornalista pegando testemunhos sobre a Redinha, onde tenho vida por toda a vida.

Benedito ignora a própria idade. Faz um esforço para lembrar, mas finalmente entrega os pontos, admitindo que não sabe ao certo a idade que tem. Seus documentos, informa, têm apenas uma idade aproximada. Fiz meu registro quando já estava para me aposentar. Janjão o interrompe e dá a última palavra. Esse homem tem a face de uns sessenta anos. Benedito, sorrindo, concorda. Aprova os sessenta anos e principia.

Eu alcancei esta vila muito diferente. Hoje o movimento de barcos é muito fraco. Não há mais peixes. O peixe, aqui, é apenas o de tresmalho. Quando cheguei aqui, há muitos anos, pela manhã e à tarde, diariamente, chegavam ao Mercado de duas a três cargas de peixes de outras praias. Da Barra do Rio, aqui perto, vinha muita tainha. Fazia gosto. Além disso, o peixe não era tão caro e o pobre podia comer. Preta e morna, a terra dos mangues fervilhava de unhas-de-velho, sururus, caranguejos e siris moles. O passadio era bom. Com o passar do tempo, as coisas foram minguando e, algumas, como os coqueirais, desapareceram. Morreram…

O mangue tem olhos e vê.

 

Acima em destaque, a capelinha dos pescadores; acima, o pintor Diniz Grilo e o autor em fotografia de Carlos Soares. Acervo do Instituto Franklin Jorge [em organização].