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Renascimento da tragédia ou sua morte?

Uma mudança ontológica para realização plena da tragédia no século XIX e nos dias atuais.

*Alexsandro Alves

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I.

Durante o século XIX, um debate estético foi central para muitos estetas: fazer renascer a tragédia grega.

Durante os anos de 1849-1851, Richard Wagner elaborou três ensaios político-estéticos que desempenhariam profunda influência na maneira de conceber suas obras: Arte e revolução, A obra de arte do futuro e Ópera e drama. Esses três ensaios lidam com assuntos como política, anarquia, homossexualidade (embora o termo não apareça em nenhum dos ensaios), anticlericalismo e, no caso do primeiro, antissemitismo, todos transpassados por um ideal estético: o retorno da tragédia aos dias modernos.

Para Wagner, o capitalismo, que ele entendia como mantido pelos banqueiros internacionais, que eram judeus, era a principal fonte de aniquilamento do espírito moderno, por conta desse sistema, que ela denominava de sistema judaico, os indivíduos eram substituídos por máquinas, crianças estavam sendo exploradas em minas de carvão e isso levava, portanto, a uma impossibilidade do homem alcançar seu potencial máximo, isto é, tornar-se artista.

No entanto, como exposto em Arte e revolução, a mercantilização da arte, engendrada pela elite capitalista judaica, minava o espírito do homem moderno transformando-o em mero objeto, o desumanizava. O individualismo propiciado pelo capitalismo trabalhava para sabotar esse artista, que na visão wagneriana, não era um indivíduo, mas a coletividade. Ao estudar sobre os gregos antigos, Wagner observou que a arte era um processo “democrático e coletivo onde o povo participava tanto como criador quanto como espectador”.

Por tanto, para uma restauração da tragédia ática, era necessária a destruição do sistema político e econômico vigente. Mas será que apenas isso seria mesmo suficiente para a utopia wagneriana se consolidar?

Um dos que mais seguiram Wagner nesse aspecto foi Nietzsche. Em O nascimento da tragédia, de 1872, proclama que o drama wagneriano é a restauração moderna da tragédia clássica. Mas será que é mesmo? Sem dúvida, obras como A valquíria caminham a passos largos em direção a esse objetivo, o trágico! Mas consegue? E se não consegue, por que não consegue?

II.

A valquíria, composta em 1856, é um drama com três eixos dramáticos centrais: o amor incestuoso do gêmeos Siegmund e Sieglinde, as contradições de Wotan, que deseja o amor livre mas não consegue abandonar a ordem estabelecida e a libertação de Brünnhilde, a valquíria filha de Wotan, através da desobediência. Sobre todos esses eixos dramáticos, paira a figura de Fricka, deusa guardiã da família e do matrimônio.

No primeiro ato, conhecemos os gêmeos Siegmund e Sieglinde, o Prelúdio do drama é violento, uma figura repetitiva nas cordas graves em stacatto enquanto outras cordas, em frêmito, levam a música a um crescendo, quando as tubas wagnerianas executam o motivo de Donner, deus do trovão e uma torrente desaba na percussão, sacudindo a orquestra inteira – Sigmund foge através da Floresta Negra em uma noite torrencial. Ele chega em uma cabana e é socorrido por Sieglinde. Aos poucos, se reconhecem como irmãos e se apaixonam. Para fugirem, ela coloca sonífero na bebida do marido, Hunding e mostra para o irmão uma espada encravada numa árvore, ele a retira do tronco e, mostrando para ela a espada afirma ser o seu “presente de casamento”.

No segundo ato, Fricka, deusa da família e do casamento, protetora das tradições, exige que Wotan, deus maior, puna o casal incestuoso. A deusa ouviu “o clamor de Hunding” e agora a família exige punição. Mas Wotan, que na cena anterior, comemorou a união do casal de irmãos, não parece concordar com a avaliação de sua esposa. O casamento de Hunding e Sieglinde foi forçado, portanto, não havia amor e se não há amor, a família já estava destruída. Já a união dos gêmeos, mesmo que imoral para a tradição, foi produzida pela magia do amor e segundo o deus: “ninguém pode resistir a uma força como o amor”. Para Wotan, é o amor que, através de uniões nunca imaginadas, renova o mundo. A visão tradicional de Fricka, segundo Wotan, não permite que ela consiga enxergar com mais profundidade os acontecimentos.

Mas para que a visão de Wotan sobre o mundo prevaleça, ele precisa destruir sua lança, a lança dos tratados e eliminar as hierarquias do mundo. Wotan recua. Fricka, que compreende que Wotan deseja a destruição do sistema que mantém os deuses soberanos, pergunta se ele de fato abandonaria sua posição. Diante de sua própria contradição, ele é esmagado pelo peso de sua responsabilidade como deus governante de todos e condena os gêmeos à morte. Fricka, vitoriosa, ordena que Wotan mande a valquíria para o campo de batalha e transpasse Siegmund e Sieglinde com sua lança, como exemplo para os desobedientes. Um exemplo poderoso, já que os gêmeos são filhos de Wotan com uma mortal.

Antes da batalha, Brünnhilde aparece para Siegmund e revela seu destino. A cena da Anunciação da morte, ato II, cena IV, é a mais dramática e humana cena até esse momento. A valquíria consegue perceber o amor que une os dois irmãos, seus irmãos também, e ao ter esse contato tão próximo com humanos, sente emoções que nunca sentiu entre outros deuses e, incapaz de compreender essas novas emoções, mas sentido profunda identificação com o sofrimento dos personagens mortais, resolve agir por si mesma, dando vitória aos gêmeos, é a sua hybris que desemboca na harmatia da trama (a desmesura, hybris, que provoca o erro, a harmatia, que desencadeia a catástrofe).

Essa decisão de Brünnhlide força os deuses a agirem diretamente na luta de Siegmund e Hunding. Assim, Brünnhilde ergue seu escudo contra a fúria de seu pai para proteger seus irmãos; Wotan despedaça a espada de Siegmund e o mata. Brünnhilde foge levando Sieglinde.

O último ato se inicia com a Cavalgada das valquírias. Elas esperam a chegada de Brünnhilde. Ao notarem a chegada da irmã, percebem que esta carrega no cavalo não um guerreiro, mas um mulher. Apavoradas, perguntam à irmã o que houve e, quando esta conta sobre sua desobediência, tremem por conta da ira de Wotan. Uma tempestade se forma no norte, anunciando a chegada do deus. Brünnhilde consegue convencer as irmãs a mostrarem um local seguro para Sieglinde ter seu filho, elas indicam as florestas do Leste. São florestas guardadas por Fafner, um gigante que se transformou em dragão – não é um lugar para alguém indefeso, mas Wotan teme o dragão. Sieglinde irrompe em um agradecimento emocionante e parte. A chegada de Wotan é tumultuosa e ele expulsa as outras valquírias, ficando em cena apenas ele e Brünnhilde.

III.

E chegamos à cena final. É o momento em que a culminância da tragédia precisa ocorrer. Brünnhilde deve ser punida exemplarmente.

Wotan lança a condenação: ela será posta para dormir e seu corpo, desprotegido, será violentado por qualquer homem que a ver. E se algum homem conseguir despertá-la, ela lhe será por esposa, terminando os seus dias fiando roupas e fazendo comida. Como personagem trágico receberia essa condenação?

Ele a aceitaria. Édipo aceita sua condenação sem reclamar.

Brünnhilde insiste em inocência, afirmando que agiu por amor.

É que, na cabeça dela há um crime doloso e um crime culposo e ela não agiu com a intenção de provocar dolo. Aqui, a tragédia termina. E a ação se configura, se converte em drama. E aqui se mostra a impossibilidade de restauração do trágico.

Não há inocentes na tragédia. Édipo não sabia que Jocasta era sua mãe, nem que Laio era seu pai; teve filhos com Jocasta e matou Laio. Mas Édipo, dentro de uma visão contemporânea nossa, não deve ser culpado, ele não sabia disso! Nós compreendemos a relação crime/criminoso também pela ótica da consciência e do desejo de cometer o crime; assim Brünnhilde pensa e tenta influenciar Wotan.

Édipo, e os gregos, não pensavam assim. Uma vez feito o ato, não interessava saber se houve consciência ou não. Tanto assim que Édipo, mesmo não tendo consciência que praticava incesto, pois desconhecia que Jocasta fosse sua mãe e também desconhecia que Laio era seu seu pai (parricídio, um dos crimes mais funestos entre os gregos), cega seus olhos e passa a perambular como um mendigo pelo mundo.

Esta é a moral trágica.

Diferente da moral cristã, ou burguesa, que analisa cada caso, cada crime, dentro de uma visão que compota intenção, consciência e motivação, chegando a separar crimes de ordem dolosa (quando existe intenção) de culposa (quando não existe intenção). Esse pensamento de Brünnhilde é moderno, não clássico.

Mais do que apenas uma questão econômica, a restauração desse espírito trágico, desse homem trágico, é impossível porque não pensamos a vida dentro dos limites de um modo de vida tão brutal e sem nuances.

A mudança de perspectiva da Valquíria, que nos atos I e II se encaminhava tragicamente, para um desenlace dramático no ato III, uma mudança radical, é uma mudança de perspectiva ontológica. O ser moderno não se observa como trágico e nem admite uma vida puramente trágica. As leis que nos governam são outras.

E assim, Wotan percebe que de fato a consciência de sua filha não tinha intenção de cometer o ato criminoso, movida por sentimentos fortes e que nunca sentiu antes, se embriagou, ele usa esse termo; e assim, ela não pode ter uma punição tão severa.

Ele a adormece, mas encobre o lugar com fogo, para que apenas um único homem, o mais virtuoso, a desperte, ela não será humilhada, mas será igual àquele que a despertar. Esse esse homem será Siegfried, filho dos gêmeos, sobrinho de Brünnhilde, conforme a orquestra nos anuncia ao final do drama, executando o motivo musical do herói quando Wotan afirma que apenas alguém que não tema a sua lança (isto é, a ordem estabelecida), poderá adentrar no círculo de fogo e despertar a filha.

E essa música é sem igual! A mais soberba que o compositor escrevera até o momento e que estudaremos em breve. Abaixo, algumas Brünnhildes modernas famosas e um vídeo com o final da Valquíria, a música do Fogo Mágico.

 

 

Christine Goerke, como Brünnhilde, Metropolitan, NY, 2019, produção de Robert Lapage

 

James Morris, Wotan e Irene Theorin, Brünnhilde, Metrpolitan, NY, provavelmente final da década de 90 (1999?), produção de Otto Schenk

 

 

Cena do fogo mágico, Bayreuth, 2010, produção de Tankred Dorst

 

Abaixo, um vídeo com o final da Valquíria, a cena do Fogo Mágico, na produção de Harry Kupfer para Bayreuth, 1992. John Tomlinson como Wotan e a regência de Daniel Barenboim.