*Franklin Jorge – Um pobre homem do Ceará-Mirim
O poeta se diz um “samba acabado”. Havia pouco completara oitenta anos, quando o revi, sozinho, num reservado do tradicional Bar de João Nogueira, sorvendo lentamente um gole de cerveja morna. Cândida, a proprietária, informa que ele não gosta de companhia, porém certamente terá prazer em receber-me, pois me conhece desde menino e acompanha com interesse o meu trabalho de jornalista. Ultrapassamos duas portas antes de chegarmos ao reservado ao pé da escada que com conduz ao sótão, um lugar atulhado de caixas contendo garrafas vazias.
Seu Renato, trouxe-lhe uma visita que o senhor vai gostar de receber, diz a boa mulher em tom baixo, fechando a porta do reservado num velho casarão da Praça do Rosário. O poeta, desconfiado, examina-me com atenção, apertando as pálpebras. Há quanto tempo, heim, não vem ao Assu? Seja bem vindo. Aqui você está entre os seus. Sente-se. Noto que não há nenhuma cadeira além da sua. Bebo aqui, nesse escondidinho, para discortar [sic] os convites, explica, enquanto Cândida sai e volta com uma cadeira.
Que coisa horrível é a velhice, não? Com saúde já é ruim, agora avalie quando o sujeito, como é o meu caso, padece de muitas doenças. Sendo que a pior delas é a velhice mesma. O jeito é a gente se conformar. Diz o matuto, sabiamente, que quem não quer ficar velho morre moço… Eu, imprevidente, fiquei velho e agora pago em dobro o que desperdicei quando era moço e enfrentava a vida com disposição…
Ah, você não imagina quanto tenho sido fustigado pelos achaques da velhice. Todo dia é uma novidade. É a próstata, os rins, o fígado, os intestinos, o sistema respiratório, o reumatismo, tudo se manifestando ao mesmo tempo, numa confusão tremenda que lembra o caos parlamentar. Cada órgão defendendo seus interesses e querendo se fazer ouvir ao mesmo tempo numa barafunda medonha. Nessa idade, já estou com o juízo mole. Esqueço as coisas e o que ia fazer naquele momento. As lembranças e as coisas vão se distanciando de mim…
Em 1940, quando publiquei a primeira edição de “Fulô do Mato”, eu saía com o livro debaixo do braço, de porta em porta, para vendê-lo a cinco mirréis. Passava o dia nessa perambulação e não me cansava. Agora, quase não consigo fazer o trajeto de casa até aqui. Venho me arrastando. As pernas não mais me obedecem. Às vezes, penso que estou andando e não saí do lugar. Ou, então, quero ir para a direita e as pernas me levam a contragosto para a esquerda… Mesmo assim, acho a vida boa. Ah a vida é boa. E eu quero viver, apesar da velhice.
Naquele tempo, sem profissão, sem diploma, tinha que me virar para ganhar algum. Já muito conhecido por minha verve, achei que podia viver da minha poesia, então recitada por todo mundo. Mas, como deve saber, o homem de letras passa por muitas humilhações. Principalmente quando tem talento, pois o talento é algo que ninguém perdoa. Perdoa-se o roubo, o assassinato, o latrocínio, o estupro, mas o talento, não. Eu, apesar, de minha popularidade, ainda assim fui muito humilhado. Passei por cada uma que lembrar cada uma delas seria o mesmo que mergulhar num poço sem fundo.
Certa vez, ao tentar vender o meu livro a um importante político do Rio Grande do Norte, que eu conhecera rapazinho em Santa Cruz, ajudando a servir às mesas na pensão de sua mãe, botou-me pra fora do seu gabinete, dizendo em voz alta para todo mundo ouvir, Vá trabalhar, vagabundo! Vá trabalhar, vagabundo! Só não digo o seu nome por discrição. Mas, todos o conhecem, dentro e fora da Assembléia, como Major Theodorico… — Theodorico Bezerra, não é? — Você está dizendo, não eu… Nessa época, fiquei tão revoltado, que até compus uns versinhos que caíram no gosto do povo.
Eu conheci Theodorico,
Quando lavava penicos
No hotel da velha Donana.
Hoje é rico, é potentado.
É major, é deputado…
Oh sorte velha sacana!
Outra vez, visitando Cascudinho no chamado Principado do Tirol, na época uma das melhores casas de Natal, ele me chamou de filho da puta, não lembro o motivo. Donana, sua mãe, ouviu suas palavras e me defendeu. Disse, Luís, não diga isso, pois Renato é filho de uma boa mulher, nossa parenta. Respeite Renato! Hoje, por mais que dê tratos à bola, não consigo lembrar-me porque Cascudinho me chamou de filho da puta. Talvez tenha sido uma brincadeira de mau gosto… Algum rompante de rapaz acostumado a ter todas as suas vontades satisfeitas… Mas, certo é que não esqueci essa afronta…E já se passaram quase setenta anos.
Estou aposentado desde 1973. Quando eu prestava e tinha saúde, viajava muito. Andei todo o Rio Grande do Norte e parte do Brasil: Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, sempre tentando ganhar a vida sem roubar e sem me meter em política. Quando passei a ter emprego fixo, como avaliador judicial, passei a ficar mais por aqui. Também já estava casado e sob a vigilância de Fausta, a quem dei motivos para muita preocupação…