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Resistência, desobediência civil e cidadania, parte 10

Em uma série de artigos, o advogado Elicio Nascimento comenta sobre um tema importante para os nossos dias: a desobediência civil. Abaixo, a parte 10.

*Elicio Nascimento

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Precedente de Desobediência Civil na Seara Ambiental

A parte anterior você encontra aqui.

As normas ambientais frequentemente estabelecem restrições ao uso dos espaços ambientalmente protegidos e de seus recursos naturais, com vistas a assegurar a sua preservação. É o que ocorre, por exemplo, com as unidades de conservação da natureza, regulamentação atualmente estabelecida na lei 9.985/2000, cujo fundamento constitucional se encontra no artigo 225 parágrafo 1º nos incisos I, II, III e VII da Constituição Federal.

Conforme o artigo 2º inciso I da lei 9.985/2000, as unidades de conservação são espaços territoriais, incluindo seus recursos ambientais, instituídos pelo Poder Público com objetivos de conservação sob regime especial de administração. Por imperativo constitucional, a alteração desses espaços depende de lei, sendo vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos dos mesmos (artigo 225 parágrafo 1º, III).

As unidades de conservação da natureza, segundo a lei 9.985/2000, dividem-se em Unidades de Proteção Integral e Unidades de Desenvolvimento Sustentável. As primeiras têm por objetivo preservar a natureza e admitem apenas o uso indireto de seus recursos naturais, exceto nos casos previstos em lei. Quanto as segundas, têm por meta compatibilizar a preservação ambiental com o uso parcial de seus recursos naturais (art. 7º).

Todas as unidades de conservação, em maior ou menor medida, limitam a utilização dos espaços e de seus recursos e, em alguns casos, impedem até mesmo a sua visitação pública e ensejam a desapropriação das áreas envolvidas. Em razão dessas medidas, à população que habita essas áreas, são impostas alterações ao modo de vida. Em alguns casos, às mesmas é exigido que abandonem tais espaços. Em razão das normas que regem as unidades de conservação ser consideradas injustas, por vezes são descumpridas.

Nesse contexto, Mendes (2009, p. 235) apresenta um caso que qualifica como desobediência civil relacionada à instituição de unidades de conservação da natureza.

Faz referência à instituição do Parque Nacional do Jaú que, desde a sua criação em 1980, segundo a autora, enfrenta problemas fundiários, nele remanescendo moradores que, segundo as normas atualmente vigentes, o Poder Público deveria realocá-los e indenizá-los pelas benfeitorias construídas (MENDES, 2009, P.235).

À época da instituição do Parque vigia a Constituição de 1967 que garantia os direitos à vida, liberdade, segurança, e à propriedade (art. 150). No plano infraconstitucional, vigia o Decreto 84.017/1971, que limitava sobremaneira a utilização dos recursos naturais dentro do parque e inviabilizaria a permanência das costumeiras populações no local.

Segundo (MENDES, 2009), os ribeirinhos que viviam na comunidade do Jaú, excluídos do processo de criação do parque e, na maioria dos casos, sem experiência política, sofreram diversas restrições em seu modo de vida, sob a ameaça e a efetiva aplicação de sanções legalmente previstas em razão do descumprimento da norma e, de forma pública e não-violenta, permaneceram no local:

Todas as cominações penais e civis, junto ás penalidades cabíveis passaram a permear o cotidiano destes moradores com a chegada do parque. Melhor dizendo, assombrar o cotidiano daqueles moradores, pois mesmo que o Estado não tenha tido a regularidade suposta para implantar de fato um sistema fiscalizatório na área, suas visitas esporádicas tinham a vantagem de servirem como exemplo, bastante ameaçador para outros infratores. […] Um pouco por falta de perspectiva de vida fora do parque, um pouco por perceberem a injustiça de que estavam sendo vítimas, muitos ribeirinhos desobedeceram ao Estado que estava à sua frente, na forma do IBDF, legitimado pelo Decreto nº 84.017/71, impondo à força da lei e do monopólio da coerção física uma nova cosmografia para a área em que viviam. A própria lei representava uma violência neste momento. Uma violência contra a vida e contra a dignidade humana. […] Sem saber, estes ribeirinhos que agiram amparados pela Carta Maior, que resguardava o direito à vida e à dignidade humanas e concretizaram o dever de resistir à lei injusta (MENDES, 2009, p. 257).

 

Assim, impulsionados por uma norma que eles consideravam injusta, já que a mesma não considerava a existência e o modo de vida das populações do Parque Nacional do Jaú, embora desprovidos de mecanismos legais para assegurar os seus direitos, os ribeirinhos do Jaú optaram, ainda que inconscientemente, pela desobediência civil, caracterizada por uma resistência pública e sem violência a fim de assegurarem os seus direitos à dignidade, vida, patrimônio cultural e moradia, por isso sofreram as sanções civis e criminais previstas.

Ressalte-se que, apenas em 2002, mais de vinte anos depois da criação do Parque Nacional do Jaú, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública em benéfico dos ex-moradores e moradores do Parque Nacional do Jaú, contra o IBAMA e a União, objetivando a regularização fundiária do parque, o reassentamento dos moradores e a indenização dos moradores e ex-moradores.

O exemplo referido incita à reflexão sobre a imperatividade da norma e de seus efeitos em face dos direitos fundamentais das minorias, notadamente quanto à preservação de sua cultura, de seu modo de vida e do próprio meio ambiente em que vivem, quando os mecanismos para a proteção desses direitos, embora previstos formalmente, são materialmente inacessíveis, seja pela realidade social dessas pessoas, seja pela demora na atuação dos órgãos competentes.