*Elicio Nascimento
A parte 1 dessa série você encontra aqui.
Direito de Resistência: Aspectos Históricos
PAUPÉRIO (1978, p. 11-13), fornece-nos o conhecimento histórico acerca do direito de resistência como resultado da insuficiência de sanções jurídicas direcionadas aos governantes que ultrapassassem os limites do poder, a eles outorgado pelos governados:
Frequentemente as sanções jurídicas organizadas contra o abuso do Poder não são suficientes para conter a injustiça da lei ou dos governantes, pois, estes, quando extravasados de seus naturais limites, muitas vezes não podem ser contidos por normas superiores que já não respeitam. Por isso, reconhece-se aos governados, em certas condições, a recusa da desobediência.
Ele identifica na recusa à obediência, um tríplice aspecto: a oposição às leis injustas, a resistência à opressão e a revolução. Pela oposição às leis injustas, explica, concretiza-se a repulsa de um preceito determinado ou de um conjunto de prescrições em discordância com a lei moral – essa resistência é de iniciativa individual ou de um grupo limitado; pela resistência à opressão concretiza-se a revolta contra a violação, pelos governantes, da ideia de direito do qual o Poder procede, cujas prerrogativas exercem. Pela revolução, concretiza-se a vontade de estabelecer uma nova ordem em virtude da falta de ressonância da ordem vigente na sociedade.
Na primeira hipótese, resume, está em jogo a relação entre duas regras; na resistência à opressão, é a atitude dos governantes por correlação com a ideia do direito que lhes legitima a autoridade e na última hipótese, a revolução, a oposição entre duas ideias de direito. Procurando localizar as raízes históricas do direito de resistência, Machado Paupério registra o Código de Hamurabi que previra a rebelião como castigo ao mau governante que não respeitasse aos mandamentos e as leis. Na Grécia fica o registro de Sófocles, na sua obra mais famosa, Antígona, de que há certas leis não escritas, superiores a todas as outras, mediante as quais se concede a possibilidade de desobedecer às demais, quando forem colidentes. Essa peça grega mostra-nos, no diálogo travado entre Ismene e Antígona, a revolta desta contra o decreto do rei Creonte que não deixara sepultar seu irmão Polinice. Em Roma, comenta, nenhuma doutrina se encontra a respeito, mas vem consignar, na Idade Média, um registro de nota. PAUPÉRIO (1978, p. 41):
Das conhecidas questões de Farinaccius (nº XII, 88-91) depreende-se, aliás, que já o direito romano não desconhecia inteiramente a legalidade da resistência. Caso o magistrado, faltando à justiça, já não se reputa magistrado e passa a não ser mais que um sujeito particular, do mesmo modo como nos é dado resistir à violência que qualquer particular nos faz, lícito semelhante nos será também resistir à injustiça do magistrado e seus oficiais, pois, obrando injustamente, não têm, repito mais autoridade que se meros particulares fossem.
Conclui PAUPÉRIO (1978, p.77), que a Idade Média reconhecera sempre que o dever de obediência dependia da legitimidade da ordem dada e o direito de resistência, ainda que pelas armas, seria válido quando a ordem vigente perdesse o reconhecimento (da sociedade) que lhe legitimava a autoridade, considerando-se meros atos de violência quaisquer injunções impostas através da força.
Já COSTA (1990), refere o direito de julgar as ações do governo, levando suas origens à teoria política Tomista, pela qual o homem, aristotelicamente considerado animal social e político, necessita de um governo, pois se: “entre os membros de um corpo, um é o principal, que a todos move como o coração, ou a cabeça, cumpre, por conseguinte, que em toda multidão haja um regitivo. Daí o dever de obediência ao soberano: esta ordem das coisas, todavia, podia ser considerada injusta. Neste caso, o súdito não poderia agir individualmente, já que não se devia “proceder contra a perversidade do tirano por iniciativa privada, mas sim pela autoridade pública” – ou seja, as medidas necessárias a se evitar um governo injusto “dependiam do próprio poder público: a institucionalização da hereditariedade, que garantia a unidade do território; a organização das cortes em seções especializadas e o Parlamento, que expressava as forças sociais dominantes.”
Conforme PAUPÉRIO (1978, p. 69-70), algumas análises na obra de Tomás de Aquino entendem que ele reconhecia o direito de resistência, partindo do pressuposto de que “o levante contra o tirano não chegava a constituir sedição, mas a resistência ou a repressão da repressão da sedição”.
Para LAFER (1998), a teoria Tomista potencializa um direito de resistência quando contempla uma reação, um direito de revolução contra um regime tirano que ultrapasse o terreno da reciprocidade existente entre governantes e governados, isto é, que desequilibre esta relação.
De maneira diversa entende COSTA apud. PAUPÉRIO (1997), ao afirmar que em Tomás de Aquino o dever de obediência deriva da necessidade de se criar um Estado organizado, capaz de empreender um governo que mantivesse os homens em paz. Assim, mesmo em situações injustas promovidas pelo tirano devia-se a ele o dever de obediência para evitar males maiores, como a anarquia, por exemplo. PAUPÉRIO (1997, p.55) define que, “se não for […] excessiva a tirania, aconselha Santo Tomás a não investir contra ela, pois é preferível tolerá-la branda por algum tempo a expor-se a perigos mais graves que a própria tirania.” Em vez da resistência, defendeu mais diretamente “o direito de julgar as ações dos governos”. Somente se permite resistir quando for o melhor para o bem comum da sociedade; quando necessário para a proteção da ordem social conforme as exigências da natureza humana. A ideia da injustiça e justiça estaria vinculada à ideia de uma lei natural escrita por Deus na natureza física e social, a qual o homem poderia captar através da razão. Já a lei humana se apresenta como produto dos homens em sociedade, mas que por ter sua inspiração na lei natural deverá ser obedecida. Na visão Tomista o direito de resistência só seria legítimo quando a tirania fosse excessiva, e tal resistência contra o tirano não deveria consistir numa iniciativa particular, mas sempre pública (coletiva), desde que esgotados todos os outros meios.
Conforme (COSTA, 1990), há registros históricos do direito de resistência em dois institutos da idade média. O primeiro refere-se ao dever de fidelidade germânica, a commendatio que estabelecia os limites da relação entre os senhores e vassalos. Estes deveriam obedecer fielmente àqueles, mas havendo violações aos limites obrigacionais, por parte dos senhores, gerava-se o direito de resistir por parte dos vassalos. O segundo, beneficium, “determinava aos tiranos que se orientassem pelos fundamentos do cristianismo, estabelecidos pela igreja, sob pena de sofrerem uma desobediência justificada.”
Com o advento do iluminismo, a racionalidade invade o mundo moderno, em todas as suas manifestações. Nesse contexto é proposta uma teoria racional para o nascimento do Estado, denominada contratualismo, conforme BOBBIO, BOVERO (1996). De acordo a esse mito fundante, os homens viviam livres e iguais no estado de natureza, local onde possuíam direitos natos e imutáveis. No entanto, devido à precariedade, insuficiência ou guerra – a depender da abordagem – que os indivíduos se encontravam no estado de natureza, um estado negativo, levou-os a constituírem a sociedade política e o Estado através de um pacto, um contrato. Vista sob este ângulo, a sociedade se legitima no consenso.
A construção foi colocada por John Locke com máxima precisão. Para este, no momento da passagem para a sociedade civil, os indivíduos alienaram uma parcela de sua liberdade a um poder centralizado, que teria a função de protegê-los e garantir aos mesmos um tranquilo uso de seus direitos, sobretudo o uso da propriedade privada. Tem-se assim, que o consentimento dá legitimidade ao governo e gera um grau de reciprocidade entre este e o povo, resultando na relação civil entre governante e governados. Estes devem, ao primeiro, obediência enquanto aquele deverá respeitar os direitos essenciais dos governados, tais como a liberdade, propriedade e vida, sob pena de estar degenerando a sociedade civil. Segundo BOBBIO (1997), a falta de liberdade, a conquista, a usurpação, a tirania ou a dissolução do governo, proporcionaria uma crise da sociedade que tornaria possível um retorno ao estado de guerra. Ou seja, segundo NODARI (1999, p. 154):
A violação deliberada da propriedade (vida, liberdade, bens) e o uso contínuo da força […] colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo assim o legítimo direito ao povo de resistência à opressão…
A importância de Locke na construção do instituto de resistência ganha enorme importância, haja vista o fato do mesmo ter sido um dos principais mentores da estrutura estatal-burguesa, enfatizando a liberdade e a propriedade como valores máximos a serem opostos contra o Estado protegidos de sua ingerência autoritária. John Locke afirma que no estado de natureza cada homem é juiz de suas próprias causas e, por serem os homens imparciais e buscarem seu próprio interesse, a lei natural não é suficiente para suprir essa necessidade jurisdicional. “O fim maior e principal para os homens unirem-se em sociedade e submeterem-se a um governo é, portanto, a conservação de sua propriedade” (LOCKE, 1998).
Conforme (BOBBIO, 1997, p. 239):
Como a sociedade civil nasce de uma crise no estado de natureza, a sua crise torna possível o retorno àquele estado. Locke admite, dessa forma, o direito de resistência em determinadas situações como quando o governo subverte as causas para as quais foi criado e se ofende a lei natural.
Em Hobbes BOBBIO, BOVERO (1996 p.81-82), devido ao caráter totalitário do Estado, apenas a vida não é alienada ao mesmo no momento do contrato. Segundo a visão absolutista de Hobbes, ainda que o Estado, na figura do soberano, não conseguisse garantir a paz e a vida de seus súditos, o mau governo acarretaria, não num fundamento à resistência dos súditos, mas no retorno da sociedade civil ao estado de natureza.
Aos poucos o jusnaturalismo moderno passa a depositar no indivíduo a razão de ser do Estado e do direito, construção que culmina na positivação constitucional do direito de resistência à opressão BOBBIO (1992). Em consequência disso, surgem declarações de direitos que asseguram direitos individuais como a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que, em seu artigo 2º prescreve: “A finalidade de toda associação é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a segurança e a resistência à opressão.” Apud. Nelson N. Costa, (1990, p. 20).