*Elicio Nascimento
Direito à Desobediência Civil: Histórico
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O direito de resistência ganhou reconhecimento, ao longo da história, como um mecanismo eficiente diante das condutas opressivas dos governantes. Todavia, sua possibilidade de atuação era limitada, pois exigia como principal requisito a expressão da vontade da maioria (COSTA, 1990, p.25).
Os Estados Unidos da primeira metade do século XIX estavam em guerra contra o México. Henry David Thoreau, crítico da guerra e da escravidão, encontrou uma forma peculiar de resistir e protestar: decidiu não pagar os impostos porque considerava não ser justa a utilização dos impostos para financiar a escravidão e a guerra injusta contra o México. Thoreau é autor do ensaio “Desobediência Civil”, em que faz uma defesa da desobediência civil individual como forma de oposição legítima frente a um Estado injusto. A recusa ao pagamento de impostos levou Thoreau à prisão, mas o seu protesto consciente de resistência política tinha por objetivo fazer valer o seu direito de cidadania e interferir no processo de tomadas de decisões pelo Estado com o fito de manter a coesão social interna e em relação ao México. Com ele, pode-se dizer que o direito de resistência evoluiu para a categoria de desobediência civil, pela qual a minoria tinha possibilidade, quando oprimida, de enfrentar o governo na busca de melhores condições. Assim, deu maleabilidade e dinamismo à resistência, transformando-a em verdadeiro instrumento de cidadania, de modo que reencontrou sua capacidade de oposição à opressão COSTA (1990, p.5). Segundo ele, o critério da maioria, no qual se assenta a democracia, deve ser refutado em razão de não necessariamente se identificar com o senso de justiça. O motivo porque se permite a maioria governar encontra-se justamente em sua maior força física.
Assim, para THOREAU (1999, p. 13):
A razão prática porque se permite que uma maioria governe, e continue a fazê-lo por um longo tempo, quando o poder finalmente se coloca nas mãos do povo, não é a de que esta maioria esteja provavelmente mais certa, nem a de que isto pareça mais justo para a minoria, mas sim a de que a maioria é fisicamente mais forte.
Para ele o caráter opressivo da lei não é atenuado pela proveniência democrática, calcada nas regras da maioria. O respeito à lei deve se firmar na consciência do indivíduo, de modo que a desobediência à norma, quanto esta se colide às consciências individuais, configura um dever ético do cidadão. Isto porque A lei jamais tornou os homens mais justos e, por meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem-intencionados transformaram-se diariamente em agentes da injustiça (THOREAU, 1999).
Deste modo, a obediência às leis e práticas do governo não impunha a concordância que decorre da imposição da maioria sobre uma minoria, mas sim de uma avaliação individual que deveria negar a autoridade do governo quando este tivesse caráter injusto, não importando que fosse a expressão da vontade da maioria, visto que esta nem sempre agia da melhor maneira. Enfim, a desobediência demonstra-se como a única saída a ser adotada pelos indivíduos quando se depararem com legislação e práticas governamentais que não procurassem agir pelos critérios da justiça, ou contrariassem os princípios morais do indivíduo, (THOREAU, 1999, p. 32).
Thoreau se propõe a resolver a seguinte indagação: Leis injustas existem, devemos conter-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las, obedecer-lhes até triunfarmos ou transgredi-las desde logo? (THOREAU, 1999, p. 23).
Conclui pelo dever de desobedecer, mesmo que disso resultasse o aprisionamento, que deveria ser encarado como mérito pessoal. Isto é, quando os governos agem injustamente fazem da prisão o único lugar digno para um homem justo. (THOREAU, 1999, p. 31).
A prisão, neste caso, serviria para mobilizar a opinião pública a adotar a mesma atitude e o próprio governo a mudar a sua postura, ARAUJO (1994).
Segundo COSTA (1990, p.33), Thoreau deu uma nova dimensão à resistência proposta pelos liberais, pois insere desobediência civil na tarefa de efetivação de reivindicações específicas. Afirma que a desobediência civil é o único caminho para democratizar o Estado liberal, por meio de reformas capazes de vigorar de maneira efetiva, mediante realizações especializadas e periódicas.
Mahatma Gandhi inspirou-se nas ideias de Thoreau para liderar a reação pacífica contra a dominação inglesa da índia. Gandhi introduziu novas noções ao conceito de desobediência civil, pois, para ele, a desobediência civil era um instrumento adequado à defesa dos direitos de cidadania, em todos os níveis, notadamente em face dos abusos do Estado e do capitalismo inglês. Duas premissas teóricas fundaram a sua concepção de desobediência civil, segundo apontamentos de MONTEIRO (2003), quais sejam: a) a desobediência passiva, por meio de movimentos de reivindicação não violenta; b) política de não cooperação pelos boicotes a determinados produtos a fim de atingir os interesses dos produtos capitalistas e conquistar direitos sociais.
As construções de Thoreau influenciaram o principal responsável pela independência da Índia, defensor fervoroso da desobediência civil, Mohandas Karamachad Gandhi. (1869-1948).
Para Gandhi, a desobediência era um direito inalienável do homem, sendo o seu exercício um eficaz meio de convencer o poder estatal quanto às injustiças e desacertos de suas políticas sociais. A proposta adotada por Gandhi se diferenciava da de Thoreau, no que tange a prever a desobediência civil como um ato coletivo, que tende ao sucesso quando realizado por um número expressivo de pessoas. Para ele somente a ahimsa ou, não-violência, seria uma atuação política profícua na conquista das mudanças necessárias em um mundo moldado sob a cultura da intolerância e do arbítrio LAFER (1988, p. 188).
Para Gandhi, a desobediência às leis consiste num mecanismo da cidadania para modificar, de modo pacífico, a ordem governamental e jurídica COSTA (1990, p.35).
Segundo COSTA (1990, p.42), Gandhi pregava que a resistência civil “é o meio mais eficaz de expressão da alma e de maior eloquência para protestar contra a manutenção do poder de um Estado nocivo.” Para Gandhi, a desobediência civil é o direito imprescritível de todo cidadão. Ele não saberá renunciá-lo sem deixar de ser homem: GANDHI, apud Nelson Costa (1990, p.34). Suas ideias estavam direcionadas a acabar com a legislação discriminatória contra o povo da Índia, que estava sob domínio do Império Britânico, (ARAUJO, 1994 p.14-17). Acreditava que a Índia não estava suficientemente preparada para a satyâgraha, resistência pacífica realizada através de protestos não violentos. Através de campanhas de desobediência civil e de não cooperação (asahayoh; por exemplo, boicotava a compra do produto inglês) exigia a saída das forças do Império Britânico. Eis que em 1948 todo este processo culminou na independência da Índia.
Martin Luther King foi o líder da resistência civil negra contra o racismo nos Estados Unidos – racismo que negava os direitos civis e políticos aos negros. Luther King exercia o direito de desobediência civil também de forma pacífica, eis que era a forma viável de oposição e resistência à insurreição e à violência. O fez em favor dos direitos da população negra dos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60, época de intensa segregação racial em hospitais, escolas e restaurantes. Apesar da Constituição, estabelecer a igualdade de todos perante a lei, a segregação continuou, até mesmo no campo jurídico, somente em 1954 foi declarada a sentença de inconstitucionalidade da segregação nas escolas. Para King o terreno do judiciário, exclusivamente, se fazia insuficiente. Era necessária a construção de uma organização civil. Encontrou em Thoreau e Gandhi a chave para montar um movimento de resistência não-violenta. Considerava que a desobediência civil não realizada em nossa correspondente ao mais alto nível de protesto não violento. Ela deveria ser aberta, e, acima de tudo, ser levada a cabo por grandes massas e completamente sem violência. (COSTA, 1990, p.31).
O líder negro de reação pacífica à antissegregação racial teorizava que a desobediência civil era o mais alto nível de protesto não violento (COSTA, 1990, p.42), e, segundo MONTEIRO (2003, p.68), a reação radical e opressora, pelo governo, à desobediência civil em massa, tornaria ainda mais evidente a opressão e a injustiça exercidas pelas autoridades estatais. Dessas manifestações práticas de desobediência civil é possível sintetizar, teoricamente, duas acepções: uma, a desobediência individual consciente; outra, a desobediência civil coletiva qualificada.
Na primeira experiência vivida e difundida por Thoreau, o exercício do direito de desobediência expressa à prerrogativa de um direito civil individual, que é o direito de protestar, de reagir, de resistir às leis injustas e aos governos não democráticos que violam direitos civis. A segunda, expressa um direito transindividual, difuso ou coletivo de resistir ou de desobedecer de forma igualmente pacífica leis injustas (no todo ou em parte), bem como de reagir às injustiças e desacertos das políticas antissociais. Mesmo na sua face contratualista, em que a desobediência civil era cara ao pensamento liberal clássico, ela podia ser concebida como essencial ás liberdades, portanto, um direito fundamental do homem de resistir à opressão.
Isso está presente, inclusive, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – a primeira carta universalista que positiva o núcleo dos direitos fundamentais. Destaca o Artigo 2º da declaração que a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos imprescritíveis do homem, que são a liberdade, a segurança e a resistência à opressão.
Por outras palavras, hodiernamente, o direito de resistência à opressão corresponde à nova denominação jurídica: direito de resistência e desobediência civil como um legítimo direito à preservação dos direitos de primeira, segunda e terceira geração, conforme a clássica divisão oferecida por John Rawls.
Pode-se afirmar diante do que se expôs, que o direito à desobediência civil não consiste em ato de negação à ordem jurídica, mas, ao revés, em exercício de direito que visa precipuamente defender os direitos fundamentais da cidadania que estão albergados na ordem jurídica.
Feitas as considerações teóricas iniciais e traçada, de modo sucinto, a evolução histórica do direito de resistência, hoje denominado desobediência civil, exige-se, por quesito metodológico, a definição conceitual como forma de compreensão do núcleo teórico desse tema em epígrafe.